Institui e disciplina a atribuição de um suplemento remuneratório aos trabalhadores da Secretaria Regional dos Equipamentos e Infraestruturas que prestem trabalho em condições de risco e penosidade

Sua Excelência

o Presidente do Tribunal Constitucional

 

            O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira vem, ao abrigo do disposto no artigo 278.º, n.ºs 2 e 3 da Constituição da República Portuguesa, requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade da norma adiante especificada, constante dodecreto que lhe foi enviado para assinatura como decreto legislativo regional intitulado “Institui e disciplina a atribuição de um suplemento remuneratório aos trabalhadores da Secretaria Regional dos Equipamentos e Infraestruturas que prestem trabalho em condições de risco e penosidade”, aprovado em sessão plenária no dia 3 de julho p.p. e recebido, no seu Gabinete, no dia 17 de julho p.p., nos termos e com os fundamentos seguintes:

 

I

Enquadramento

 

  1. Através do decreto intitulado “Institui e disciplina a atribuição de um suplemento remuneratório aos trabalhadores da Secretaria Regional dos Equipamentos e Infraestruturas que prestem trabalho em condições de risco e penosidade”, pretende a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira estabelecer um suplemento remuneratório para os trabalhadores daquela Secretaria Regional, “independentemente da modalidade de vínculo de emprego público e da categoria ou carreira em que estejam integrados, que efetivamente prestem trabalho em condições de risco e penosidade” — artigos 1.º, n.º 1, e 2.º do decreto sub judice.
  2. O artigo 3.º do decreto estabelece quais as funções que se consideram prestadas em condições de risco e penosidade, bem como os termos em que as mesmas conferem direito ao suplemento remuneratório em causa.
  3. O artigo 4.º do decreto, por seu turno, diz respeito aos montantes do suplemento remuneratório em questão.
  4. Cumpre desde já esclarecer que o que está em causa não é o estabelecimento deste suplemento remuneratório para os destinatários já referidos ou os respetivos termos, mas a extensão do mesmo aos trabalhadores da administração local.
  5. Com efeito, nos termos do artigo 1.º, n.º 2, do decreto em apreço, “O suplemento remuneratório previsto no número anterior é, igualmente, aplicável aos trabalhadores equiparados da administração pública local, após deliberação expressa do órgão municipal competente.”
  6. É esta, e apenas esta, a norma objeto do presente requerimento de fiscalização preventiva da constitucionalidade.
  7. A matéria respeitante à atribuição de suplementos remuneratórios na Região Autónoma da Madeira, em razão das condições de risco e penosidade, aos trabalhadores da Direção Regional de Estradas já havia sido objeto de legislação regional, nomeadamente, através dos Decretos Legislativos Regionais n.ºs 1/97/M, de 25 de fevereiro, e 26/2017/M, de 18 de agosto. Não se colocava então — como não se coloca agora — qualquer questão de constitucionalidade relativamente à competência do legislador regional para a instituição de suplementos remuneratórios para os trabalhadores da administração regional autónoma.
  8. Segundo o artigo 159.º, n.º 1 da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, “[s]ão suplementos remuneratórios os acréscimos remuneratórios devidos pelo exercício de funções em postos de trabalho que apresentam condições mais exigentes relativamente a outros postos de trabalho caracterizados por idêntico cargo ou por idênticas carreira e categoria”.
  9. De acordo com o mesmo artigo 159.º, n.º 3, al. b), são devidos suplementos remuneratórios quando trabalhadores, em postos de trabalho determinados nos termos do n.º 1, sofram, no exercício das suas funções, condições de trabalho mais exigentes, desde logo, “[d]e forma permanente, designadamente as decorrentes de prestação de trabalho arriscado, penoso ou insalubre, por turnos, em zonas periféricas, com isenção de horário e de secretariado de direção”.
  10. Todavia, de acordo com o n.º 6 do mesmo artigo 159.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, os suplementos remuneratórios são criados por lei, sem prejuízo de poderem ser regulamentados por instrumento de regulamentação coletiva de trabalho.
  11. Nesta senda, surge o Decreto-Lei n.º 25/2015, de 6 de fevereiro, que veio “explicita[r] as obrigações ou condições específicas que podem fundamentar a atribuição de suplementos remuneratórios aos trabalhadores abrangidos pela Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, bem como a forma da sua integração na Tabela Única de Suplemento”.
  12. Nos termos do artigo 2.º deste Decreto-Lei (“Fundamentos de atribuição de suplementos remuneratórios”), constituem fundamento para a atribuição de suplemento remuneratório com caráter permanente várias circunstâncias específicas com as quais em parte se identificam as enunciadas no artigo 3.º do decreto sub judice,designadamente, a “[p]enosidade da atividade ou tarefa realizada originando sobrecarga física ou psíquica ou originada pelo horário em que é prestada a função”; mas também o “[r]isco inerente à natureza das atividades e tarefas concretamente cometidas, de investigação criminal, ou de apoio à investigação criminal, proteção e socorro, informações de segurança, segurança pública, quer em meio livre, quer em meio institucional, fiscalização e inspeção”; ou a “[i]nsalubridade suscetível de degradar o estado de saúde do trabalhador devido aos meios utilizados ou pelas condições climatéricas ou ambientais inerentes à prestação do trabalho” (cfr. artigo 2.º, n.º 2, als. d) a f) do Decreto-Lei n.º 25/2015, de 6 de fevereiro).
  13. Sucede que, nos termos do seu artigo 1.º, n.º 2, a aplicação deste Decreto-Lei n.º 25/2015, de 6 de fevereiro, à administração local faz-se por diploma próprio.
  14. Ora, tal diploma próprio não foi até agora aprovado: o legislador nacional não procedeu ainda à extensão para os trabalhadores da administração local do direito aos suplementos remuneratórios regulados no Decreto-Lei n.º 25/2015, de 6 de fevereiro.
  15. A questão que se coloca é, então, a de saber se pode o legislador regional fazê-lo: respeitará a Constituição da República Portuguesa uma norma inserida num decreto legislativo regional que estenda aos trabalhadores da administração local dessa mesma Região um suplemento remuneratório que não existe para generalidade dos trabalhadores das autarquias locais em Portugal?
  16. A resposta é negativa, pelas razões que se seguem.

 

II

Da inconstitucionalidade orgânica do n.º 2 do artigo 1.º, do decreto enviado ao Representante da República para a Madeira para assinatura como decreto legislativo regional intitulado “Institui e disciplina a atribuição de um suplemento remuneratório aos trabalhadores da Secretaria Regional dos Equipamentos e Infraestruturas que prestem trabalho em condições de risco e penosidade”

 

  1. O artigo 1.º do decreto enviado ao Representante da República para a Madeira para assinatura como decreto legislativo regional intitulado “Institui e disciplina a atribuição de um suplemento remuneratório aos trabalhadores da Secretaria Regional dos Equipamentos e Infraestruturas que prestem trabalho em condições de risco e penosidade” tem a seguinte redação:

 

“Artigo 1.º

Objeto

1 — O presente diploma institui e disciplina a atribuição de um suplemento remuneratório aos trabalhadores da Secretaria Regional dos Equipamentos e Infraestruturas, em caso de efetiva prestação de trabalho em condições de risco e penosidade.

2 — O suplemento remuneratório previsto no número anterior é, igualmente, aplicável aos trabalhadores equiparados da administração pública local, após deliberação expressa do órgão municipal competente.” (sublinhado nosso)

  1. É inequívoco que o disposto no n.º 2 deste artigo 1.º tem implicações na autonomia e no estatuto das autarquias locais e seu regime financeiro. Senão, vejamos.
  2. Em primeiro lugar, a extensão do suplemento remuneratório aos trabalhadores da administração local, nos termos do citado n.º 2, pretende constituir na esfera jurídica daqueles um acréscimo que, presentemente, os mesmos não têm, uma vez que, como demonstrado supra, o Decreto-Lei n.º 25/2015, de 6 de fevereiro, não foi até hoje objeto de aplicação à administração local através de diploma autónomo.
  3. Ora, os suplementos remuneratórios integram a remuneração dos trabalhadores com vínculo de emprego público, a par da remuneração base e dos prémios de desempenho (artigo 146.º da LGTFP); e o pagamento pontual da remuneração, englobando estes três componentes, é um dever do empregador público respetivo (artigo 71.º, n.º 1 da LGTFP).
  4. A priori, a norma objeto do presente requerimento apresenta duas possibilidades de interpretação: (i) a mesma pode ser vista como conferindo imediatamente um direito a certos trabalhadores da administração local, direito esse cuja efetivação depende do exercício de competências por parte de órgãos municipais; (ii) ou pode ser eventualmente interpretada apenas como norma de competência, simplesmente no sentido de ter conferido às autarquias locais, - qual “Lei habilitante” -, o poder de atribuir o suplemento remuneratório em causa a alguns dos seus trabalhadores. Qualquer que seja a interpretação que se perfilhe, a norma em causa é violadora da Constituição da República Portuguesa (pelo que não parece da máxima relevância determinar à partida qual a melhor ou mais correta de ambas as possibilidades interpretativas, o que nos levaria para aspetos que se creem demasiado laterais para uma apreciação de constitucionalidade).
  5. Na primeira das referidas possíveis interpretações, os trabalhadores da administração local passariam, por efeito da norma sub judice, a ser titulares de um direito novo, e as autarquias a estar oneradas com um novo dever correlato daquele direito: o pagamento dos acréscimos remuneratórios correspondentes aos suplementos.
  6. É manifesta a interferência com a autonomia financeira do poder local, pois com esta norma o legislador regional constitui as autarquias locais da Região Autónoma da Madeira (e apenas estas) numa nova responsabilidade financeira, até ao momento inexistente.
  7. Com efeito, como já afirmou este douto Tribunal Constitucional no seu seminal  Ac. TC n.º 420/2018, de 9 de agosto de 2018 (votado, aliás, por unanimidade), em passagem que agora se acompanha com pleno cabimento ao caso em apreço, a norma aqui sindicada “impondo a atribuição de um direito [na situação então em causa, o “(benefício da tarifa social na água) aos bombeiros da RAM”; agora, um suplemento remuneratório para os trabalhadores da administração local]  «à custa» de receitas dos municípios (...) não deixa de interferir com os traços do regime geral fixados pelo legislador e o espaço de autonomia dos municípios, seja decisória, seja financeira, no que respeita à assunção de despesas e livre disposição das suas receitas a prossecução dos seus fins, nos limites da sua autonomia financeira tal como regulada por lei”.
  8. Uma vez que a norma sub judice atribui um direito subjetivo aos trabalhadores da administração local, o exercício daquela competência por parte dos órgãos autárquicos não é discricionário ou essencialmente discricionário, o que, teoricamente, abre aos trabalhadores da administração local da Região a possibilidade de lançarem mão de meios processuais previstos da legislação de processo administrativo com vista à obtenção da condenação das autarquias locais ao exercício daquela mesma competência.
  9. Ora, esta possibilidade consubstancia uma clara afetação da autonomia local, constitucionalmente garantida (artigos 6.º, n.º 1, e 235.º e seguintes da CRP).
  10. Note-se que não está em causa, simplesmente, a ampliação na Região Autónoma da Madeira do suplemento remuneratório em questão.
  11. Do que se trata é de o próprio legislador regional onerar as autarquias madeirenses com o encargo financeiro decorrente da atribuição deste (novo) direito, e de nisso implicar o exercício das competências dos órgãos dos municípios.
  12. É inequívoco que o conteúdo material da norma sub judice diz respeito ao estatuto das autarquias locais e seu regime financeiro, previsto no artigo 165.º, n.º 1, al. q) da CRP, porquanto o estatuto das autarquias locais “abrange seguramente a sua organização, as suas atribuições e a competência dos seus órgãos, a estrutura dos seus serviços, o regime dos seus funcionários, bem como o regime das finanças locais, ou seja, a generalidade das matérias tradicionalmente incluídas no chamado «Código Administrativo»” — cfr. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, 4.ª ed., Coimbra Editora, 2010, p. 332.
  13. Assim, invocando mais uma vez o douto Ac. TC n.º 420/2018, “A questão de constitucionalidade, tal como colocada nos presentes autos, consiste em determinar se a norma sindicada versa sobre matéria que se encontra reservada à competência legislativa da Assembleia da República (AR), em concreto, por força da cláusula de reserva relativa de competência legislativa consagrada na al. q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, segundo a qual é da exclusiva competência da Assembleia da República legislar, salvo autorização ao governo, sobre matéria e «Estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais» – matéria que, por força do disposto na al. b) do n.º 1 do artigo 227.º e do artigo 228.º, n.º 1, da Constituição, se encontra expressamente excluída da competência legislativa das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas por aí se afastar a possibilidade de uma lei de autorização legislativa incidir sobre essa matéria do domínio da competência reservada da Assembleia da República”.
  14. No caso sub judice, à semelhança do que estava em causa no já citado Ac. TC n.º 420/2018, a norma afeta “recursos financeiros e receitas próprias dos municípios da RAM a uma finalidade extrinsecamente determinada pelo legislador regional”, em termos inovadores face ao disposto pelo legislador no plano nacional e “projeta os efeitos da concessão do direito nela previsto sobre a esfera jurídico-financeira dos municípios da RAM”. 
  15. Deste modo, o poder de autodeterminação financeira que integra a autonomia financeira das autarquias locais (em especial artigo 238.º, n.ºs 1 e 3 da Constituição da República Portuguesa) não deixa de se mostrar afetado no seu conteúdo respeitante à decisão de gestão e disposição dos seus recursos financeiros, em especial os assentes nas receitas próprias – matéria que se integra no estatuto das autarquias locais, reservado à competência legislativa da Assembleia da República. Ainda nas palavras do Ac. TC n.º 420/2018, “(...) qualquer que seja a interpretação da norma sindicada que se tome por base, e tendo o conteúdo da norma sindicada reflexo sobre o «quadro legal de nível nacional» (...)[aqui leia-se, em matéria de suplementos remuneratórios em condições de risco e penosidade] (ampliando o seu âmbito subjetivo de aplicação) e incidência direta — senão preclusiva, pelo menos fortemente limitativa — sobre elementos essenciais caracterizadores da autonomia local, em especial da autonomia decisória e financeira dos municípios — por via da necessária prossecução de interesses públicos por estes não determinados e da disposição de recursos financeiros próprios municipais sem prévia decisão dos órgãos municipais competentes —, é de concluir que a matéria sobre que incide a norma sindicada se reporta a matéria integrada na reserva relativa da AR consagrada na al. q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição — quer na vertente do estatuto das autarquias locais (atribuições e competências dos órgãos do município), quer na específica vertente, naquele contida, do regime das finanças locais”.
  16. 33.  Ainda que assim não se entendesse e se abraçasse a segunda das possibilidades interpretativas referidas supra — isto é, que se considerasse a norma sindicada apenas como norma de competência, simplesmente no sentido de ter conferido às autarquias locais o poder de atribuir o suplemento remuneratório em causa a alguns dos seus trabalhadores —, o legislador regional estaria a bulir tão ou mais intensa e inconstitucionalmente com o estatuto das autarquias locais. Talvez o legislador regional pretendesse o contrário: isto é, talvez estivesse a evitar interferir na autonomia local ao estabelecer uma intervenção necessária de órgãos dos municípios. Mas, juridicamente, o resultado não é esse.
  17. Desde logo, porque a formulação da norma em causa determina uma nova competência de órgãos do poder local, uma vez que a mesma não tem consagração legal (designadamente, no regime jurídico das autarquias locais, constante da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, na redação emergente da Lei n.º 50/2018, de 16 de agosto).
  18. Do ponto de vista da estrutura da norma sub judice, a mesma assenta a extensão do suplemento remuneratório em questão aos trabalhadores equiparados da administração local, “após deliberação expressa do órgão municipal”. Esta formulação parece querer ser respeitadora da autonomia local, na medida em que supõe que aquela equiparação entre trabalhadores ficaria na disponibilidade das próprias autarquias, sendo que a norma em questão nem sequer determina qual o órgão “municipal competente”.
  19. Pese embora seja muito discutível a relevância jurídica da mens legislatoris, pode até conceder-se que o legislador regional pretendia apenas uma limitação mínima da autonomia local. Mas alguma limitação estaria certamente no seu espírito, posto que a norma em causa não é de teor meramente recomendatório.
  20. Com efeito, o que resulta da mesma é que os trabalhadores das autarquias locais, nesta perspetiva, podem vir a ter um direito novo mediante decisão dos “órgãos municipais”.
  21. Porém, importa sublinhar que se trata, nesta perspetiva, de uma possibilidade (expetativa) que os trabalhadores das restantes autarquias locais em Portugal não têm (nem podem vir a ter sem uma intervenção do legislador nacional!).
  22. Poderia dizer-se que, em última análise, se tal direito depende do exercício de uma competência municipal (cujo órgão nem sequer é determinado), então o legislador regional estaria a respeitar, suficientemente talvez, a autonomia autárquica. Mas essa é uma deslocação do problema. Desde logo porque, ainda que assim fosse, isso não tiraria o facto de existir uma invasão da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República: isto é, a Constituição da República Portuguesa só autoriza interferências legislativas na autonomia autárquica (limitativas ou outras) por lei parlamentar ou decreto-lei autorizado.
  23. De resto, a reserva parlamentar abrange, como vimos, o próprio estatuto dos trabalhadores da administração local, pelo que não pode ser um decreto legislativo regional a estabelecer a possibilidade da referida equiparação.
  24. Mas a não identificação do órgão municipal titular da competência não é menos problemática, nem infirma as considerações que antecedem.
  25. Na verdade, com a norma sub judice o legislador regional assenta uma necessidade de atuação dos municípios que, neste momento, não existe no ordenamento jurídico português. Com efeito, pelo menos a operatividade do direito dos trabalhadores ao suplemento em causa depende do exercício de uma competência municipal, e isso condiciona a autonomia local, na medida em que as competências são poderes-deveres a exercer perante situações jurídicas ativas individuais.
  26. Por outro lado, a determinação dessa atuação sem a fixação de um órgão especificamente competente aponta, afinal, para a criação de uma nova atribuição, que é depois determinante na interpretação das competências já fixadas para os órgãos municipais no Regime Jurídico das Autarquias Locais.
  27. Ora, de acordo com o artigo 237.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, “[a]s atribuições e a organização das autarquias locais, bem como a competência dos seus órgãos, serão reguladas por lei, de harmonia com o princípio da descentralização administrativa”. E como é sobejamente sabido, a reserva de lei que neste preceito se encontra opera juntamente com o disposto no artigo 165.º, n.º 1, al. q) (cfr. J. J. Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, II, cit., p. 723).
  28. Poderia dizer-se que, nos termos em que a norma está estruturada, o legislador regional, na verdade, pretende subordinar-se ao legislador nacional no respeitante às competências dos órgãos municipais, neste sentido: quando a referida competência vier a ser fixada pelo legislador nacional, então a norma sub judice poderá finalmente funcionar; até lá, a mesma considera-se “programática”, isto é, dependente desse facto futuro para a sua plena operatividade. Simplesmente, tal raciocínio, que apenas por mera cautela se antecipa, tão-pouco afastaria tudo o que se disse supra.
  29. Em primeiro lugar, isso sempre implicaria uma intromissão no estatuto das autarquias locais, ainda que para subordinar a respetiva efetividade a uma atuação futura do legislador nacional.
  30. Depois, há que dizer que o legislador nacional nunca estabeleceria apenas tal competência “em singelo”: fá-lo-ia no contexto de um regime jurídico de adaptação à administração local do Decreto-Lei n.º 25/2015, tornando então inaplicável a norma sub judice, o que confirmaria, afinal, o caráter inovador desta última.
  31. Ainda que à norma objeto do presente requerimento pudesse deste ponto de vista ser apontada alguma “programaticidade”, tal não a afastaria, em todo o caso, da noção “funcional de lei” que a jurisprudência constitucional utiliza para efeitos da fixação da noção de “norma” passível de fiscalização preventiva da constitucionalidade (cfr. Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, VI, Coimbra Editora, 2001, p. 156).
  32. Saliente-se também que a norma sub judice se refere aos “trabalhadores equiparados da administração pública local” — portanto, abrangendo municípios e freguesias —, mas a deliberação da qual dependeria a atribuição do suplemento remuneratório seria reservada a órgãos municipais, o que teria um de dois resultados intoleráveis: (i) ou à partida recusaria a possibilidade de trabalhadores das freguesias terem direito a tal suplemento remuneratório, o que seria violador do princípio da igualdade (artigo 13.º da CRP); (ii) ou faria depender a situação jurídico-financeira das freguesias do exercício de uma competência municipal, quando aquelas têm órgãos próprios (artigo 244.º da CRP).
  33. Nos termos do Ac. TC n.º 420/2018 — cuja citação abundante se nos perdoará por inteiramente justificada —, “(...) não obstante apontar a doutrina a dificuldade de se descortinar o critério que presidiu à delimitação das matérias reservadas relativamente à competência legislativa da Assembleia da República suscetíveis de delegação legislativa às Assembleias Legislativas Regionais e das matérias em que tal se mostra vedado (assim, Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra Editora, 2007, Anotação ao artigo 228.º, p. 360 e J. J. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª ed., 2010, Anotação ao artigo 227.º, p. 667), certo é que, por referência à matéria prevista na al. q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição (estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais), entendeu o legislador de revisão constitucional, em 2004, manter a mesma na esfera de competência legislativa dos órgãos de soberania (Assembleia da República e Governo, mediante autorização parlamentar), sem possibilidade de a respetiva normação ser feita ao nível regional, mesmo com autorização.

Note-se apenas que, sem prejuízo dos poderes cometidos pela Constituição às Regiões Autónomas na relação com as autarquias locais, como os poderes de criar e extinguir autarquias locais, bem como modificar a respetiva área, nos termos da lei (artigo 227.º, n.º 1, al. l)), de exercer tutela sobre as autarquias locais (idem, al. m)) e de elevar povoações à categoria de vilas ou cidades (idem, al. n)), as matérias constitucionalmente previstas referentes às autarquias locais – como as eleições e o estatuto dos eleitos locais (artigo 164.º, alíneas l) e m)), o regime de criação, extinção e modificação das autarquias locais (artigo 164.º, al. n)) e a respetiva criação, extinção e modificação no território continental (idem), o regime da elaboração e organização dos orçamentos das autarquias locais (artigo 164.º, al. r)), o estatuto das autarquias locais, incluindo o regime das finanças locais (artigo 165.º, n.º 1, al. q)), a participação das organizações de moradores no exercício do poder local (artigo 165.º, n.º 1, al. r)) e regime e forma de criação das polícias municipais (artigo 165.º, n.º 1, al. aa)) – mostram-se reservadas à competência legislativa da Assembleia da República, absoluta e relativa, sem possibilidade de autorização às Assembleias Legislativas Regionais, termos em que, por força do disposto nos artigos 227.º, n.º 1, alíneas a) e b) e 228.º, n.º 1, da Constituição, o enquadramento infraconstitucional das autarquias locais – sem excecionar as autarquias locais existentes nas Regiões Autónomas – assume um carácter unitário, de âmbito nacional, decidido no plano parlamentar nacional.

Esta opção do legislador constituinte (e de revisão), que se afigura decorrer da compreensão da autonomia das autarquias locais (e da sua existência) no quadro do Estado unitário (artigo 6.º, CRP) e na organização democrática do Estado (artigo 235.º, n.º 1), aponta para a igualdade estatutária das autarquias locais existentes (municípios e freguesias), diferenciando o continente e as Regiões Autónomas tão só quanto à existência das (ainda não criadas) regiões administrativas (artigo 236.º, n.ºs 1 e 2). No demais, as condições específicas das «ilhas» poderão determinar o estabelecimento, por lei, de outras formas de organização territorial autárquica (artigo 236.º, n.º 3), que não os atualmente previstos municípios e freguesias”.

(...)

A cláusula de reserva relativa prevista na al. q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, invocada como fundamento determinante de inconstitucionalidade nos presentes autos, assume relevância no quadro da garantia constitucional da autonomia do poder local, tal como resulta do regime constitucional contido no seu Título VII, dedicado ao Poder Local, e artigos que o integram (arts. 235.º a 262.º) – e que permitem apreender, como sustenta a doutrina (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição..., Anotação ao artigo 165.º, I, pp. 543-544) – mas sem esgotar –, o significado e alcance da matéria integrada na reserva prevista naquela al. q).

(...)

Assim, para avaliar se o poder normativo regional, tal como exercido, plasmado na norma ora sindicada, afronta a reserva de competência da Assembleia da República, é necessário compreender o âmbito da reserva legislativa parlamentar em causa, ou seja, o que se entenda incluído na norma constitucional alegadamente preterida com a aprovação da norma ora em crise – a partir da jurisprudência deste Tribunal sobre a garantia constitucional da autonomia local em geral e sobre a concreta cláusula de reserva legislativa da AR em matéria de estatuto das autarquias locais.

Tenha-se, pois, presente que o princípio constitucional da autonomia local, enquanto conceito aberto e, em grande medida, relacionado ou sofrendo o influxo de outros princípios constitucionais, como o princípio da descentralização, assume uma vertente garantística que se traduz na específica delimitação dos poderes de normação em matéria de estatuto das autarquias locais, tal como formulada na norma competencial da Assembleia da República ora em análise.”

  1.  E, mais adiante, assenta o Ac. TC n.º 420/2018: “Especificamente quanto à reserva relativa de competência legislativa respeitante ao estatuto das autarquias locais constante da al. q) do n.º 1 do artigo 165.º da Constituição, a determinação do seu conteúdo e alcance foi já objeto da jurisprudência constitucional, incluindo no segmento que respeita às finanças locais, no âmbito da análise de diversas questões de inconstitucionalidade orgânica, em sede de fiscalização sucessiva e preventiva, seja em relação a normas de Decreto-Lei (Acórdão n.º 452/87, Acórdão n.º 329/99, Acórdão n.º 674/95, Acórdão n.º 39/17 ou Acórdão n.º 288/2004), seja a normas de decreto aprovado por assembleia legislativa de região autónoma para ser assinado como decreto legislativo regional (Acórdão n.º 4/2000 e Acórdão n.º 415/2005).

Pese embora a diversidade de teor das normas sindicadas, da jurisprudência proferida por este Tribunal, quer na vigência da reserva em matéria de estatuto das autarquias locais contida na al. s) do n.º 1 do artigo 168.º da Constituição (Acórdãos n.ºs 329/99, 4.1 e 674/95, n.º 5), quer já depois da revisão constitucional de 1997, de acordo com a qual a reserva em causa passou a estar contida na al. q) do n.º 1 do artigo 165.º (Acórdão n.º  415/2005 (cfr. II, B., 10.) e  Acórdão n.º 39/17, II, B), 12. e ss. em especial 13.) resulta, quanto à apreciação da questão da inconstitucionalidade orgânica por violação da reserva prevista nas referidas alíneas do n.º 1 do artigo 165.º, que estatuto das autarquias locais respeita desde logo à respetiva organização, atribuições e competência dos seus órgãos (Acórdãos n.º 329/99 e n.º 415/2005) e à estrutura dos seus serviços e regime do respetivo funcionalismo (Acórdão n.º 674/95). Na síntese do Acórdão n.º 39/2017 (cfr. II, B), n.º 13):

«Incluída no estatuto das autarquias locais, e portanto sujeita à reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, está a regulação das atribuições das autarquias locais e das competências dos seus órgãos (cfr., neste sentido, a título exemplificativo, os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.os 329/99 e 377/99; na doutrina, Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. II, 4.ª edição revista, Coimbra, 2010, p. 332 e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, p. 454).»

É esta jurisprudência que também importa ter presente na apreciação da questão objeto dos presentes autos.”

  1. Tratando-se de matéria relativamente reservada à Assembleia da República, o próprio Governo apenas poderia legislar sobre a mesma mediante autorização legislativa, não sendo distinta, a priori, a conclusão a respeito de qualquer eventual legislação regional.
  2. Com efeito, a Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira exerce a competência legislativa nos termos resultantes dos artigos 227.º e 228.º da Constituição, e do artigo 37.º, n.º 1 do respetivo Estatuto Político‑Administrativo.
  3. Nos termos do n.º 1 do artigo 227.º da CRP, compete à Região Autónoma da Madeira:

a)                  Legislar, no âmbito regional, em matérias anunciadas no respectivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania;

b)                  Legislar em matérias de reserva relativa da Assembleia da República, mediante autorização desta, com excepção das previstas nas alíneas a) a c), na primeira parte da al. d), nas alíneas f) e i), na segunda parte da al. m) e nas alíneas o), p), q), s), t), v) x) e aa) do n.º 1 do artigo 165.º;

c)                  Desenvolver, para o âmbito regional, os princípios ou as bases gerais dos regimes jurídicos contidos em lei que a eles se circunscrevam.

d)                  (…)

  1. Neste quadro, só as leis da Assembleia da República podem ter por objecto qualquer matéria, não tendo, em princípio, limites quanto ao respectivo âmbito material, desde que respeitadas a reserva constitucional exclusiva do Governo e salvaguardada a autonomia legislativa das Regiões Autónomas, a qual incide sobre as matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania, tal como resulta do n.º 1 do artigo 228.º da CRP, conjugado com o artigo 37.º do Estatuto Político Administrativo, n.º 1, al. d) que, sob a epígrafe “Competência legislativa”, estabelece que compete à Assembleia Legislativa “legislar (…) em matérias de interesse específico para a Região que não estejam reservadas à competência própria dos órgãos de soberania”.
  2. Constituem matérias de competência legislativa própria da Região as referidas no artigo 40.º do Estatuto Político‑Administrativo.
  3. No caso concreto, estamos perante uma impossibilidade de ser conferida autorização legislativa pela Assembleia da República às Regiões Autónomas, como resulta do disposto no artigo 227.º, n.º 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa, ao excluir a al. q) do artigo 165.º, n.º 1 da CRP como passível de autorização legislativa.
  4. Por outras palavras, as Regiões Autónomas não podem legislar — rectius, não podem sequer ser autorizadas a legislar — sobre matérias que tenham implicação no estatuto das autarquias locais e seu regime de finanças, i.e., matérias abrangidas pela al. q) do artigo 165.º, n.º 1 ex vi o artigo 227.º, n.º 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa.
  5. No caso vertente, portanto, não só o legislador regional não dispunha da necessária autorização legislativa, como não poderia obtê-la à luz do artigo 227.º, n.º 1, al. b) da Constituição da República Portuguesa.
  6. Por outras palavras, ao permitir aos municípios da Região Autónoma da Madeira atribuir aos respetivos trabalhadores um suplemento remuneratório nos termos descritos, o legislador regional está a bulir com o estatuto de todas as autarquias da Região Autónoma, e para isso, como se viu, não tem, nem pode ter, competência legislativa, nem sequer autorizada pela Assembleia da República.

 

Nestes termos, requer-se ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade, com os fundamentos supra, do n.º 2 do artigo 1.º, do Decreto sub judice, por ser organicamente inconstitucional, por ausência de competência legislativa do legislador regional, em violação do disposto nos artigos 165.º, n.º 1, al. q), 227.º, n.º 1, al. b), 228.º, n.º 1, e 237, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, nos termos expostos.

                    

Queira Vossa Excelência aceitar         

Funchal, 25 de julho de 2019

 

O REPRESENTANTE DA REPÚBLICA 

(Ireneu Cabral Barreto)