O Representante da República para a Região Autónoma da Madeira, ao abrigo do disposto nos artigos 278.º, n.º 2 e 3 da Constituição e 51.º, n.º 1 e 57.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82, de 15 de novembro, na redação em vigor, vem requerer ao Tribunal Constitucional a apreciação preventiva da constitucionalidade das normas contidas nos artigos 1.º e 2.º do decreto que “determina a suspensão parcial do artigo 1.º e a suspensão dos artigos 2.º, 8.º, 9.º, 11.º e 14.º das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira”, aprovado pela Assembleia Legislativa em sessão plenária de 20 de junho do ano em curso e recebido no seu Gabinete, para os efeitos previstos no artigo 233.º da Constituição no dia 26 do passado mês de Junho, suportando-se para tanto nos fundamentos seguintes:
I – O Direito a constituir e respetivo enquadramento normativo
1.º
O decreto remetido para assinatura e publicação como decreto legislativo regional determina, no seu artigo 1.º, a suspensão parcial do artigo 1.º e a suspensão dos artigos 2.º, 8.º, 9.º, 11.º e 14.º das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de agosto.
2.º
O artigo 1.º do decreto que se submete à sindicância do Tribunal Constitucional dispõe o seguinte:
“Artigo 1.º
1 – É suspensa a parte final do n.º 1 do artigo 1.º das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, que constituem o anexo I do Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de agosto, alterado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 12/2007/M, de 16 de abril, no que se refere ao limite máximo de alojamento turístico na ilha de Porto Santo.
2 – São igualmente suspensos o n.º 2 do artigo 1.º e os artigos 2.º, 8.º, 9.º, 11.º e 14.º das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, que constituem o anexo I do Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de agosto, alterado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 12/2007/M, de 16 de abril.”
3.º
Por seu turno, o artigo 2.º do decreto em apreciação estabelece a vigência da suspensão por ele determinada, nos seguintes termos:
“Artigo 2.º
A suspensão determinada pelo presente diploma vigora até à revisão do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira”.
4.º
Por último, determina-se, no artigo 3.º do diploma, que a entrada em vigor ocorre no dia seguinte ao da sua publicação.
5.º
O Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeiraé um instrumento de planeamento territorial que se integra na categoria dos planos setoriais, de acordo com a classificação constante da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (LBPOTU), aprovada pela Lei n.º48/98, de 11 de Agosto[1] e do Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro[2] e adaptado à Região Autónoma da Madeira pelo Decreto Legislativo Regional n.º 8-A/2001/M, de 20 de Abril.
6.º
Com efeito, os planos setoriais são instrumentos de planeamento que programam ou concretizam as políticas de desenvolvimento económico e social com incidência espacial, determinando o respetivo impato territorial, na definição dada pela alínea c) do art. 8.ºda LBPOTU (e retomada com formulação ligeiramente diversa no n.º 1 do art. 35.º do RJIGT). São instrumentos de política setorial, designadamente, os planos, programas e estratégias de desenvolvimento com incidência territorial da responsabilidade dos diversos setores da administração central (e regional), nomeadamente nos domínios dos transportes, das comunicações, da energia e recursos geológicos, da educação e da formação, da cultura, da saúde, da habitação, do turismo, da agricultura, do comércio e indústria, das florestas e do ambiente.
7.º
Não se podem ignorar a importância e a função desempenhadas pelos planos setoriais do turismo, que, enquanto instrumentos que prosseguem as diretrizes previstas no Plano Estratégico Nacional do Turismo[3] (PENT), estabelecem a expressão territorial do turismo nas suas várias modalidades, além de articularem o turismo, enquanto atividade económica protetora do ambiente e da cultura, com os demais instrumentos de gestão territorial.
8.º
Essa importância assume um relevo especial na Região Autónoma da Madeira, território especialmente vocacionado para a oferta turística, beneficiando de particulares condições paisagísticas, climatéricas, patrimoniais, naturais e culturais, todas favoráveis ao exercício da atividade.
9.º
O reconhecimento da importância do turismo na Região Autónoma da Madeira baseia-se não apenas na evidência dos fatos, mas também na consagração que merece em relevantes instrumentos nacionais de planeamento e de estratégia territorial, seja de âmbito geral, como o Plano Nacional de Ordenamento do Território (PNPOT), ou de âmbito setorial, como o Plano Estratégico Nacional do Turismo (PENT).
10.º
O Plano Estratégico Nacional do Turismo (PENT), constante da Resolução do Conselho de Ministros n.º·53/2007, de 4 de Abril, desenvolve as vantagens do turismo num quadro de desenvolvimento sustentável (assente na trilogia ambiental, económica e social), que afirma como sector estratégico prioritário, no seu contributo para o aumento das receitas externas, o crescimento do PIB, o combate ao desemprego e a criação de emprego qualificado, o reforço da imagem externa de Portugal, a valorização do património cultural e natural, a promoção da qualidade de vida dos portugueses, a coesão territorial e a identidade nacional, para além do efeito de dinamização das atividades económicas e culturais que com ele se relacionam.
11.º
Da sua consulta resulta que as ilhas da Madeira e de Porto Santo são associadas à maioria dos dez produtos turísticos estratégicos eleitos pelo PENT, destacando-se o turismo de sol e mar, os circuitos turísticos(touringcultural e paisagístico), o turismo de negócios, o turismo de natureza, o turismo náutico (que inclui os cruzeiros), a saúdee bem-estar, o golfe, os conjuntos turísticos (resorts) integrados e turismo residencial.
12.º
Por seu turno, o Plano Nacional de Ordenamento do Território (PNPOT), aprovado pela Lei n.º 58/2007, de 4 de Setembro, é um instrumento de desenvolvimento territorial de natureza estratégica que estabelece as grandes opções com relevância para a organização do território, consubstancia o quadro de referência para os demais instrumentos de gestão territorial, sobre eles prevalecendo, e constitui um instrumento de cooperação com os demais Estados Membros da União Europeia (como decorre do seu artigo 1.º, n.º 2). Tem âmbito nacional, abrangendo, naturalmente, os arquipélagos dos Açores e da Madeira e aqui constituindo o quadro normativo de referência dos instrumentos de gestão territorial (artigo 2.º, números 1 e 2, da mesma Lei).
13.º
O capítulo 2 do Programa de Ação do PNPOT dedica especial atenção aos arquipélagos dos Açores e da Madeira, acentuando, em várias passagens, a necessária relação entre o desenvolvimento (sustentável) do turismo, a preservação do ambiente e da paisagem e o ordenamento do território.
14.º
Assim, no respetivo plano de ação, o PNPOT reconhece que as “Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira constituem fatores fundamentais de identidade e afirmação do território nacional, ocupando uma posição privilegiada no Oceano Atlântico. (…) Em particular, a especificidade, diversidade e riqueza do seu património e condições naturais e das suas paisagens conferem aos seus territórios uma atratividade única no contexto dos circuitos turísticos internacionais, que importa valorizar de modo sustentável, preservando a perenidade e especificidade dos valores paisagísticos e naturais”
15.º
Mais adiante, na formulação do objetivo de implementar uma estratégia que promova o aproveitamento sustentável do potencial turístico de Portugal às escalas nacional, regional e local, estabelece-se que “Portugal deve dispor de uma estratégia de desenvolvimento do sector do Turismo e implementá-la com eficácia. Para além da relevância do sector para o desenvolvimento socioeconómico das regiões, aimplementação de uma estratégia de desenvolvimento turístico numa ótica de sustentabilidade constitui também uma via para o necessário ordenamento e reabilitação dos territórios.
Assim, serão elaborados instrumentos de gestão territorial, ou alterados os existentes, de forma a estimular uma oferta estruturada de produtos de turismo rural, cultural e de natureza, num contexto de desenvolvimento sustentável. (…).
Será avaliado o potencial da costa portuguesa e da ZEE de forma a aferir a viabilidade e as condições de desenvolvimento dos produtos de turismo oceânico. Serão também avaliadas as necessidades de requalificação dos destinos de sol e praia já consolidados e ainda analisadas as melhores formas de aproveitamento sustentável das áreas costeiras.
Promover-se-ão modelos de desenvolvimento turístico para cada um dos destinos turísticos e definir-se-ão mecanismos de articulação entre o desenvolvimento das regiões com elevado potencial turístico e as políticas do ambiente e do ordenamento do território. (…)”. De seguida, e em coerência, como medida prioritária: “elaborar e implementar ou concretizar as estratégias definidas nos Planos Setoriais e de Ordenamento do Território no território continental e nas Regiões Autónomas que definam as linhas orientadoras dos modelos de desenvolvimento pretendidos para as áreas com maiores potencialidades de desenvolvimento turístico”.
16.º
São, aliás, matérias de interesse específico regional, nos termos do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (aprovado pela Lei n.º 13/91, de 5 de Junho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 130/99, de 21 de Agosto e pela Lei n.º 12/2000, de 21 de Junho), o turismo e a hotelaria (artigo 40.º, alínea t], do Estatuto).
17.º
Releva, deste modo, a vigência do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma dos Açores, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 38/2008/A, de 11 de Agosto, e do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, aprovado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de Agosto, o primeiro plano do género em Portugal.
18.º
Tendo sido já efetivada a suspensão das disposições contidas nos artigos 5.º e 6.º das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, por via da entrada em vigor do Decreto Legislativo Regional n.º 12/2007/M, de 16 de Abril, prevê-se agora suspender o artigo 1.º (parcialmente) e os artigos 2.º, 8.º, 9.º, 11.º e 14.º das normas de execução do mesmo Plano, que constituem o anexo I do citado Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de agosto.
19.º
Identificam-se as referidas disposições, por via da respectiva transcrição:
“ Artigo 1.º
1 – Até ao ano de 2012, o limite máximo de alojamento turístico para a Região Autónoma da Madeira é fixado em 35 000 camas na ilha da Madeira e 4000 camas na ilha de Porto Santo.
2 - Estes limites distribuem-se da seguinte forma na ilha da Madeira:
a) Concelho do Funchal – 23 000 camas;
b) Área dos concelhos de Santa Cruz e de Machico – 5500 camas;
c) Área dos concelhos de Câmara de Lobos, da Ribeira Brava, de Ponta do Sol e da Calheta – 4000 camas;
d) Área dos concelhos de Santana, de São Vicente e de Porto Moniz – 2500 camas.
Artigo 2.º
1 – Os empreendimentos, obras ou ações neste âmbito setorial, não totalmente conformes com o regime previsto no presente diploma e que pelas suas características ou dimensão sejam suscetíveis de induzir um significativo impacte social e económico, podem, fundamentada e excecionalmente, ser admitidos, assegurada a prossecução dos respetivos objetivos, através dos mecanismos de concertação de conflitos de interesse públicos representados pelos sujeitos da Administração Pública previstos na legislação aplicável.
2 – Para efeitos da concertação a que se refere o número anterior, deve a pretensão ser devidamente fundamentada e acompanhada dos inerentes estudos socioeconómicos e de avaliação de impacte ambiental, bem como das garantias do respetivo financiamento.
Artigo 8.º
Nos espaços urbanos são admitidos estabelecimentos hoteleiros e aldeamentos turísticos com uma capacidade máxima, por unidade de exploração, de 80 camas e apartamentos / moradias turísticas com uma capacidade máxima de 60 camas.
Artigo 9.º
Nos espaços agroflorestais são admitidas as seguintes tipologias, com capacidade máxima, por unidade de exploração, de 80 camas:
a) Estalagens;
b) Pousadas;
c) Unidades de turismo em espaço rural;
d) Quintas madeirenses;
e) Moradias turísticas.
Artigo 11.º
Podem ser admitidos empreendimentos turísticos com capacidade superior às estabelecidas no presente Plano, nas seguintes condições:
a) Quando associados a equipamentos ou infraestruturas de interesse regional e de utilização coletiva ou pública, nomeadamente campos de golfe, portos de recreio, complexos desportivos, cujo investimento caiba aos promotores privados;
b) Quando se trate de empreendimentos turísticos de tipo resort que, pelas suas características funcionais, oferta complementar de equipamentos, disponibilização de espaços verdes envolventes e integração no local, constituam empreendimentos que qualifiquem e diversifiquem a oferta turística nas zonas onde se implantem.
Artigo 14.º
1 – Para efeitos do previsto no artigo 11.º, consideram-se estabelecimentos hoteleiros de tipo resort os constituídos por diversos edifícios que disponham entre eles espaços livres e espaços verdes para utilização dos utentes, bem como de equipamentos e serviços de recreio e lazer de uso comum, sujeitos a uma mesma exploração hoteleira.
2 – Na apreciação e licenciamento dos projetos de empreendimentos turísticos referidos no n.º 1, no âmbito da gestão da distribuição territorial, deverá ser dada preferência aos estabelecimentos hoteleiros de tipo resort que apresentem as seguintes condições:
a) Localização especialmente valorizada junto do mar ou dos centros urbanos e centralidades turísticas definidas no POT;
b) Maior área de espaço livre de uso comum em relação à superfície edificada, não podendo ser inferior a 3 m² de espaço verde para 1 m² de espaço impermeabilizado;
c) Maior capacidade de estacionamento privativo, não podendo este ser inferior a um lugar de estacionamento por cada oito camas;
d) Maior superfície de piscinas, não podendo esta ser inferior a 1 m² por cama;
e) Disponibilização de equipamentos de recreio e lazer especialmente adaptados às zonas em que se localizam os empreendimentos, proporcionando uma oferta complementar diversificada e diferenciada da existente;
f) Solução arquitetónica e paisagística adaptada à zona em que se localiza, baseada, preferencialmente, em edificações de baixa altura (dois/três pisos no alçado de maior dimensão e com altura média de 3 m por piso)”.
II – A suspensão das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira e as suas implicações face ao quadro constitucional vigente
20.º
A pretendida suspensão destas relevantes disposições do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira não pode, assim, deixar de ser analisada à luz dos valores e direitos constitucionalmente protegidos do ambiente, do ordenamento do território, da participação dos cidadãos e de outras importantes garantias de tutela de que dispõem para a devida ponderação dos interesses em presença, valores e direitos necessariamente implicados na opção feita pelo legislador regional.
21.º
Desde logo, a Constituição da República Portuguesa (CRP) dedica ao ambiente, como valor em si, como direito fundamental e como dever, um importante reconhecimento no plano normativo, dedicando-lhe o artigo 66.º do seu articulado.
22.º
O fundamental direito ao ambiente, na sua dupla dimensão de direito negativo, impondo a abstenção por parte do Estado e de terceiros de ações ambientalmente nocivas, e de direito positivo, reclamando uma ação dos poderes públicos com vista à sua defesa e preservação (nesse sentido, J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, Coimbra Editora, Coimbra, anotação ao artigo 66.º, pp. 845-846), está na base das várias incumbências elencadas no n.º 2 do citado artigo 66.º CRP.
23.º
A relação dessas incumbências com um correto ordenamento do território é evidente na sua enunciação, merecendo destaque a formulação, em concreto, das disposições que dedicam referência expressa ao dever de promoção do ordenamento do território, tendo em vista a correta localização das atividades, um equilibrado desenvolvimento socioeconómico e a valorização da paisagem (alínea b]) e, bem assim, à necessária integração de objetivos ambientais nas várias políticas de âmbito setorial (alínea f], ambas do n.º 2 do artigo 66.º).
24.º
Igualmente relevante surge-nos a tarefa cometida ao Estado, às regiões autónomas e às autarquias locais de definição das regras de ocupação, uso e transformação dos solos urbanos, no quadro das leis respeitantes ao ordenamento do território e do urbanismo, desta feita pelo n.º 4 do artigo 65.º CRP, o que aponta para a harmonia e coerência do sistema de planeamento territorial.
25.º
A montante, entre as tarefas fundamentais do Estado elencadas no artigo 9.º, são de ter em conta as exigentes tarefas contidas na alínea e) – as mais das vezes ligadas entre si - de proteger e valorizar o património cultural do povo português, defender a natureza e o ambiente, preservar os recursos naturais e assegurar um correto ordenamento do território.
26.º
Da Constituição deriva assim um verdadeiro dever de ordenar o território, traduzido na imposição de o Estado, as Regiões Autónomas e as autarquias locais promoverem, de forma articulada, políticas ativas de ordenamento do território e de urbanismo, de acordo com o interesse público e no respeito pelos direitos dos cidadãos, como consagrado no artigo 4.º da Lei de Bases da Política de Ordenamento do Território e de Urbanismo (LBPOTU).
27.º
Acresce a garantia de participação dos interessados na elaboração dos instrumentos de planeamento urbanístico e de quaisquer outros instrumentos de planeamento físico do território, ainda no citado artigo 65.º, CRP, mas no seu quinto número, a qual decorre do princípio constitucional da democracia participativa, concretizando esta importante vertente do princípio do Estado de direito democrático (artigo 2.º, idem) no âmbito do planeamento territorial.
28.º
Gomes Canotilho e Vital Moreira falam, a este respeito, numa «cidadania territorial», considerando que a Constituição procurou “estimular uma cidadania territorial indispensável à prossecução de tarefas do Estado referentes ao correto ordenamento do território e desenvolvimento harmonioso (arts. 9º/e e g e 82º/d, i, l e m) e à efetivação de direitos fundamentais (direito ao ambiente e à qualidade de vida, direito ao património cultural, direito à paisagem, direito ao desenvolvimento sustentável, direito das futuras gerações, direito à fruição cultural, direito à igualdade real entre portugueses). A cidadania territorial impõe-se ainda num domínio como o do planeamento urbanístico e territorial, onde o clientelismo, os «lobbies», os grupos de interesse, a corrupção, tendem a converter o território e a cidade num esquema de perequações económicas, não raro veiculado por redes informais de influência.” (Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, cit., anotação ao artigo 65.º, p. 840).
III – Fundamentação
29.º
Ora, de que forma o presente decreto se mostra desconforme com os valores e direitos fundamentais enunciados?
30.º
Vejamos, primeiramente, o enquadramento conferido pelo ordenamento jurídico português aos instrumentos de gestão territorial e respetivas vicissitudes, de modo a situar o decreto que determina suspender várias normas do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira.
31.º
Não obstante a caracterização a priori do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira como plano setorial, entende-se, a partir da análise das disposições do Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de Agosto, revestir-se o mesmo de uma natureza híbrida, em face do quadro legal dos instrumentos de gestão territorial e da função cometida pelo ordenamento jurídico a cada uma das figuras de planeamento territorial.
32.º
Com efeito, os planos setoriais com incidência territorial não têm eficácia plurissubjectiva, vinculando apenas as entidades públicas, diferentemente dos planos municipais e especiais de ordenamento do território que também vinculam direta e imediatamente os particulares (artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro).
33.º
Nessa sequência, o Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, estabelece uma complexa relação entre os planos setoriais e os planos com eficácia plurissubjectiva (municipais e especiais), determinando que a programação e execução das políticas de desenvolvimento económico e social (estabelecidas nos planos setoriais) devem ser acauteladas pelos planos municipais de ordenamento do território e que os planos setoriais estabelecem as regras orientadoras a definir nos novos planos especiais de ordenamento do território, cabendo ainda aos planos setoriais indicar as formas de adaptação dos planos especiais e municipais preexistentes (artigos 23.º, n.º 2, 24.º, n.º 3 e 25.º, n.º 1, daquele diploma legal).
34.º
Isto, sem ignorar os mecanismos de «contra-corrente» previstos no mesmo diploma nos seus artigos 25.º, n.º 2, 79.º, n.º 2 e 80, n.º 1, que habilitam, em determinadas circunstâncias e com especiais exigências procedimentais, a derrogação de normas de planos setoriais por planos municipais ou especiais de ordenamento do território.
35.º
Contudo, o artigo 19.º das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, depois de estabelecer que este instrumento vincula as entidades públicas competentes para a elaboração e aprovação dos planos municipais de ordenamento do território, cabendo-lhes alterar (atualizar) os planos que não acautelem as opções consagradas no plano setorial em causa, vem dispor, no n.º 3, que “até à inclusão nos demais instrumentos de gestão territorial das normas de execução do presente Plano, estas aplicam-se diretamente na área setorial a que se reportam.
36.º
Deste modo, mesmo que a título transitório, é conferida direta aplicação (aos particulares) às normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, cominando-se com a sanção da nulidade “os atos de licenciamento ou autorização de projetos ou atividades que venham em desconformidade com o disposto no presente diploma” (artigo 20.º)”.
37.º
Em face do que antecede, e sendo conferida aplicabilidade direta às normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico sempre referido, com interferência normativa na esfera jurídica de particulares, mais cautelas devem acompanhar os procedimentos de alteração, revisão e suspensão do instrumento em causa.
38.º
Dispõe o decreto agora submetido à sindicância do Tribunal Constitucional tratar-se da suspensão de algumas das normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira (do anexo I do Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de Agosto).
39.º
Cumpre ter presente que a dinâmica dos instrumentos de gestão territorial tem por base a mutação das realidades bem como das opções que determinam a melhor prossecução dos interesses públicos, definidas as prioridades num quadro democrático, acautelados os valores a preservar e no respeito pelos direitos dos cidadãos. A discricionariedade de planeamento e de execução das políticas territoriais é inerente à respectiva natureza, cabendo essas escolhas e a inerente responsabilidade às entidades competentes nos termos da Constituição e da lei, sendo que até o próprio Plano de Ordenamento Turístico da Madeira contém cláusulas de flexibilidade na sua aplicação, como a constante do artigo 2.º das respetivas normas de execução.
40.º
O Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, na sua redação actual) estabelece os requisitos a que devem obedecer as suspensões dos instrumentos de política setorial determinando, no seu artigo 99.º, que: “1 – A suspensão, total e parcial, de instrumentos de desenvolvimento territorial e de instrumentos de política setorial ocorre quando se verifiquem circunstâncias excepcionais resultantes de alteração significativa das perspectivas de desenvolvimento económico-social incompatíveis com as concretizações estabelecidas no plano, ouvidas as câmara municipais, a comissão de coordenação e desenvolvimento regional e a entidade pública responsável pela elaboração do plano setorial. 2 – A suspensão dos instrumentos de desenvolvimento territorial e de instrumentos de política setorial é determinada pelo mesmo tipo de ato que os haja aprovado. 3 – O ato que determina a suspensão deve conter a fundamentação, o prazo e a incidência territorial da suspensão, bem como indicar expressamente as disposições suspensas.”
41.º
A aplicabilidade do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro, à Região Autónoma da Madeira resulta inequivocamente do próprio ato legislativo regional que procede à respectiva adaptação (artigo 1.º, do Decreto Legislativo Regional n.º 8-A/2001/M, de 20 de Abril).
42.º
No confronto do decreto remetido para assinatura com o regime agora citado, verifica-se que a pretendida suspensão não cumpre os requisitos legalmente estabelecidos, por duas razões: 1) Por não se mostrar devidamente fundamentada e justificada; e 2) Por não ter um prazo certo estabelecido para sua vigência.
43.º
Com efeito, a leitura do preâmbulo, precioso elemento auxiliar de interpretação das normas jurídicas, não esclarece as razões determinantes da suspensão, revelando-se manifestamente insuficiente para o conhecimento de quais sejam as verificadas e concretas “circunstâncias excepcionais resultantes de alteração significativa das perspectivas de desenvolvimento económico-social incompatíveis com a concretização das opções estabelecidas no plano” (artigo 99.º, n.º 1, do Decreto-Lei n-º 380/99), ficando também por esclarecer de que forma a suspensão das normas identificadas permite fazer face a essa alteração excepcional das circunstâncias e à consequente desadequação das opções tomadas em 2002.
44.º
A insuficiência da fundamentação exarada, ao limitar-se a reproduzir (textualmente ou com algum desenvolvimento) a formulação legal transcrita no ponto anterior, não permite sequer dar por verificados os pressupostos estabelecidos para a própria suspensão, em termos de justificação.
45.º
Ora, tratando-se da adoção de uma medida excepcional, necessariamente contida e utilizada em situações devidamente justificadas, considera-se que a insuficiência e falta de clareza da justificação apresentada determinam o desrespeito quer pelo princípio da determinabilidade da lei, exigindo-se um conteúdo jurídico claro e determinável quanto, nomeadamente, aos pressupostos de fato, quer pelo princípio constitucional da proporcionalidade ou de proibição do excesso, ambos derivados do estruturante princípio do Estado de Direito democrático (artigo 2.º, CRP), informando o regime material dos direitos fundamentais na Constituição).
46.º
Em especial, o princípio da proporcionalidade, nas vertentes da adequação e necessidade, deixa de cumprir o seu papel de contenção do excesso na atuação dos poderes públicos. É que as assinaladas falhas e insuficiências de fundamentação não permitem avaliar as opções em causa através do crivo daquele princípio fundamental, mostrando-se, por um lado, impossibilitada a ponderação da idoneidade do meio usado para a prossecução dos objetivos a que se propõe e, por outro lado, prejudicada a formulação de qualquer juízo de eficiência quanto à opção pela suspensão das normas planificatórias atrás identificadas em detrimento de outras alternativas.
47.º
Determinante parece ainda ser a consequência trazida pela falta de fundamentação da suspensão relativamente ao exercício de direitos fundamentais pelos particulares. É que, daquela forma, são inviabilizados os direitos de informação e, logo, de participação esclarecida dos cidadãos e estruturas representativas nos procedimentos e no controlo (prévio ou sucessivo) das escolhas feitas pelos poderes públicos competentes no âmbito do planeamento com incidência territorial. Não são pois acautelados os direitos de participação dos interessados, nos termos requeridos pelos artigos 65.º, n.º 5, 66.º, n.º 2, in fine e 267.º, números 1 e 5, da Constituição.
48.º
A ofensa de direitos associados ao estatuto de cidadania territorial, retomando-se a terminologia de Gomes Canotilho e Vital Moreira, é tanto mais gravosa quanto, ao invés do comum nos planos setoriais, se assinalaram efeitos diretos da aplicação da disciplina contida no Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira na esfera jurídica dos particulares, não sendo, por isso, despicienda qualquer alteração àquela disciplina.
49.º
Já quanto ao prazo, este parece ser um elemento central da figura da suspensão, caracterizando a figura e distinguindo-a de outras vicissitudes que possam ocorrer com instrumentos de gestão territorial. Assim, a sua presença na definição de João Miranda: “A suspensão consiste numa paralisação, por um período de tempo certo, dos efeitos de todo o plano ou de parte dele” (A Dinâmica Jurídica do Planeamento Territorial [A Alteração, a Revisão e a Suspensão dos Planos], Coimbra Editora, Coimbra, 2002, p. 231).
50.º
E por que não basta a menção, contida no artigo 2.º do decreto em apreciação, de a vigência da suspensão ser determinada pelo termo do processo de revisão do plano?
51.º
Várias ordens de razões. Desde logo, por não estar legalmente ou de fato estabelecida qualquer previsão quanto ao início e ao termo do suposto procedimento de alteração ou revisão do plano turístico em causa. Depois, o precedente criado pela anterior suspensão do plano, a que já nos referimos, sendo também aí previsto que vigoraria até à revisão do plano, o que, cinco anos volvidos, não se verificou (cfr. Decreto Legislativo Regional n.º 12/2007/M, de 16 de Abril).
52.º
A este propósito sublinhe-se que o legislador regional já considera que a suspensão operada pelo citado Decreto Legislativo Regional n.º 12/2007/M, de 16 de Abril corresponde a uma verdadeira e própria alteração do Plano de Ordenamento Turístico da Região Autónoma da Madeira, e assim a designa neste diploma.
53.º
O artigo 1.º (números 1 e 2) do decreto submetido a esse Tribunal refere-se ao Decreto Legislativo Regional n.º 17/2002/M, de 29 de Agosto como alterado pelo Decreto Legislativo Regional n.º 12/2007/M, de 16 de Abril.
54.º
Mas considerar definitiva uma alteração que se propunha provisória, como é da natureza dos atos jurídicos suspensivos, determina, neste caso, manifesto prejuízo para um correto ordenamento do território e para os direitos dos cidadãos, afastada a aplicação do regime legal a que a própria Constituição se refere e para o qual remete (artigo 65.º, números 4 e 5), sendo as garantias de participação associadas não apenas aos procedimentos de elaboração e aprovação, como também de alteração dos instrumentos de gestão territorial.
55.º
Permitir-se novamente a suspensão sem prazo certo é propiciar um verdadeiro desvio na escolha de procedimento, suspendendo quando se pretende alterar, o que, não apenas implica um vazio na ordem jurídica, propiciando a desregulação da atuação da Administração Pública regional e local num domínio sensível dos direitos dos particulares, com implicações económicas e patrimoniais não despiciendas, como subtrai o procedimento de alteração do plano das garantias de participação dos cidadãos, consentimento das populações e justa e adequada ponderação dos interesses em presença, especialmente os ambientais, cuja tutela constitucional é evidenciada no artigo 66.º CRP a que já nos referimos.
56.º
Nem se diga, quanto ao primeiro aspeto focado no ponto anterior, que o vazio de regulação resultará do próprio prazo de dez anos de vigência estabelecido nas normas de execução do Plano de Ordenamento Turístico (artigo 21.º), já que, em primeiro lugar, a disposição em causa não deixa de associar a esse fato a possibilidade de reavaliação e revisão do Plano, o que indicia, por parte da Assembleia Legislativa, as mesmas preocupações que determinam a manutenção da vigência de planos municipais até à sua efetiva revisão, mesmo quando sujeitos a um prazo de caducidade (artigo 83.º, do Decreto-Lei n.º 380/99, de 22 de Setembro); em segundo lugar, se tem por regra e por preferência a vigência temporalmente indeterminada dos instrumentos de gestão territorial; e em terceiro lugar, a ocorrer a 30 de agosto de 2012 a cessação de vigência do plano, não haveria qualquer justificação para o legislador suspender parte das suas disposições a dois meses de distância.
57.º
Este resultado ablativo de direitos dos cidadãos ao ambiente e a um correto ordenamento do território não é constitucionalmente adequado, desvirtuando o próprio sistema de planeamento territorial e os direitos e garantias que lhe estão associados e lhes são inerentes nos termos da própria Constituição.
58.º
Em especial, os direitos de participação são consagrados em preceito a que Jorge Miranda e Rui Medeiros reconhecem aplicação direta, sem necessidade de mediação do legislador. Trata-se do sempre citado n.º 5 do artigo 65.º, CRP. Na respectiva anotação ao artigo 65.º da Constituição, os autores defendem ainda tratar-se de um direito de participação em sentido amplo, defendendo que a teleologia do preceito abrange qualquer modificação substancial de instrumentos de planeamento urbanístico (Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, p. 678) e não apenas a fase da elaboração (o que não deixa de merecer concretização no artigo 96.º, n.º 1 do RJIGT).
59.º
Os instrumentos de gestão territorial e, bem assim, o próprio sistema legal que os enquadra, correspondem à concretização das normas constitucionais pertinentes, pelo que, naquilo em que aquele sistema legal se aproxima dos valores, direitos e garantias fundamentais, o desrespeito da lei acaba por consubstanciar o desrespeito da própria Constituição, como se considera no caso vertente.
60.º
As desconformidades com a Lei Fundamental assinaladas determinam e justificam a iniciativa encetada junto do Tribunal Constitucional, de acordo com o princípio da constitucionalidade das leis e demais atos do Estado, das Regiões Autónomas, do poder local e de quaisquer outras entidades públicas, consagrado no artigo 3.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa.
IV - Síntese conclusiva
Do que se vem a expor, poderá concluir-se que as normas constantes dos artigos 1.º e 2.º do decreto em apreço, por ofensa das normas e princípios contidos nos artigos 2.º, 3.º, n.º 3, 9.º, alínea e), 65.º, números 4 e 5 e 66.º, números 1 e 2, todos da Constituição, se encontram feridas do vício de inconstitucionalidade material.
Queira Vossa Excelência aceitar os melhores cumprimentos,
Funchal, 4 de Julho de 2012
O REPRESENTANTE DA REPÚBLICA
(Ireneu Cabral Barreto)
[1] Alterada pela Lei n.º 54/2007, de 31de Agosto.
[2] Com as alterações introduzidas pelos Decreto-Lei n.º 53/2000, de 7 de Abril; Decreto-Lei n.º 310/2003, de 10 de Dezembro; Lei n.º 58/2005, de 29 de Dezembro; Lei n.º 56/2007, de 31 de Agosto; Decreto-Lei n.º 316/2007, de 19 de Setembro; Decreto-Lei n.º 46/2009, de 20 de Fevereiro; Decreto-Lei n.º 181/2009, de 7 de Agosto; e pelo artigo 8.º do Decreto-Lei n.º 2/2011, de 6 de Janeiro.
[3] O PENT foi aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 53/2007, de 4 de Abril.