Adapta à Região Autónoma da Madeira o Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14 de Abril

Sua Excelência

O Presidente da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira

FUNCHAL

            Ao abrigo do disposto no artigo 233.º, n.º 2 da Constituição e no exercício da competência atribuída ao Representante da República por tal normativo, devolvo à Assembleia Legislativa o decreto aprovado em sessão plenária de 15 de Fevereiro findo que “Adapta à Região Autónoma da Madeira o Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14 de Abril”, com base nos fundamentos seguintes:

 

I – O quadro normativo europeu em matéria de protecção das galinhas poedeiras e de registo de estabelecimento de criação de galinhas poedeiras

 

  1. A criação de galinhas poedeiras em bateria      constitui o modo de produção mais difundido na União Europeia tendo, por      conseguinte, sido definidos a nível europeu parâmetros a observar na      produção por forma a melhorar as suas condições, mantendo o equilíbrio      entre os diferentes aspectos a ter em consideração, quer em termos de bem‑estar      animal quer do ponto de vista sanitário, económico e social, quer ainda no      que respeita às implicações ambientais.
  2. Neste contexto, a União Europeia produziu um quadro      regulamentar relativo aos parâmetros a observar na criação de galinhas      poedeiras.
  3. Assim, a Directiva n.º 1999/74/CE do Conselho de 19      de Julho de 1999, que estabelece as normas mínimas relativas à protecção das      galinhas poedeiras e a Directiva n.º 2002/4/CE da Comissão, de 30 de      Janeiro de 2002, relativa ao registo de estabelecimentos de criação de      galinhas poedeiras abrangidos pela Directiva 1999/74/CE do Conselho, constituem      o quadro regulamentar nuclear dos parâmetros a observar na criação de      galinhas poedeiras.
  4. Estas directivas foram, no passado, transpostas      para o ordenamento jurídico nacional pelo Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14      de Abril.

 

II – A transposição de directivas para a ordem jurídica interna pela Região Autónoma da Madeira

 

5. Anteriormente à revisão constitucional de 1997, não existia norma constitucional que determinasse uma forma específica de transposição das directivas, pelo que se entendeu que seria a natureza da matéria regulada pela directiva que ditaria, à luz das regras constitucionais sobre competência e produção e qualificação normativa, o tipo de acto público destinado a incorporar e dar execução, na ordem interna, ao direito comunitário derivado (neste sentido, v. José Maria Calheiros e Rui Medeiros, As Regiões Autónomas e a aplicação das directivas comunitárias, in Estudos de Direito Regional, LEX, Lisboa, 1997, pp. 827 e segs. e, em termos genéricos, Marcelo Rebelo de Sousa, A transposição das directivas comunitárias para a ordem jurídica nacional, in Cadernos de Ciência da Legislação, Abril – Dezembro 1992, p. 73 e segs.).

6. A alteração determinada pela revisão constitucional de 1997, através da introdução do n.º 9 no (então) artigo 112.º (anterior artigo 115.º), veio criar uma reserva de lei quanto à forma de exercício da actividade transpositiva tendo resultado clara a intenção do legislador de reservar para a Assembleia da República e para o Governo a transposição de directivas, retirando essa faculdade às assembleias legislativas (assim, cfr. Carlos Blanco de Morais, A forma jurídica jurídica do acto de transposição de directivas comunitárias, in Cadernos de Ciência da Legislação, Janeiro – Março 1998, n.º 21, pp. 55 e segs. e Carlos Blanco de Morais, As competências legislativas das Regiões Autónomas no contexto da revisão constitucional de 1997, in Revista da Ordem de Advogados, ano 57, Dezembro 1997, pp. 1001 e segs.).

            7. Porém, na sequência da IV revisão constitucional, operada em 2004, o artigo 112.º, n.º 8 passou a dispor que “a transposição de actos jurídicos da União Europeia para a ordem jurídica interna assume a forma de lei, decreto‑lei ou, nos termos do disposto no n.º 4, decreto legislativo regional” pelo que a transposição de directivas pelas Regiões Autónoma passou, a partir de 2004, a obedecer ao disposto no n.º 4 do artigo 112.º da Constituição.

 

III – O quadro normativo que se pretende instituir no âmbito regional

 

            8. De acordo com o preâmbulo do diploma aprovado pela Assembleia Legislativa, “as regras de comercialização de ovos a nível nacional, que determinam que os ovos provenientes de aves alojadas em gaiolas não melhoradas sejam destinados exclusivamente à indústria alimentar de transformação de ovos, são impraticáveis nesta Região Autónoma, atendendo ao facto de ainda não existir indústria alimentar de transformação do ovo, nomeadamente, indústria de produção de ovo produtos e estabelecimentos autorizados para transformação de ovos.”

            9. Atendendo a este circunstancialismo, entendeu a Assembleia Legislativa ser “imperioso alargar esse prazo para que as explorações de produção de ovos da Região Autónoma da Madeira possam adaptar‑se devidamente à regulamentação comunitária e nacional existente.”

            10. Neste contexto, a Assembleia Legislativa pretende, através do diploma que aprovou, adaptar à realidade regional a redacção do n.º 3 do artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14 de Abril, que transpôs para a ordem jurídica interna a Directiva n.º 1999/74/CE do Conselho de 19 de Julho de 1999, que estabelece as normas mínimas relativas à protecção das galinhas poedeiras e a Directiva n.º 2002/4/CE da Comissão, de 30 de Janeiro de 2002, relativa ao registo de estabelecimentos de criação de galinhas poedeiras abrangidos pela citada Directiva 1999/74/CE propondo‑se, no artigo 2.º do diploma em apreço, que o prazo a partir do qual se inicia a proibição gaiolas não melhoradas “é, no âmbito territorial da Região Autónoma da Madeira, alargado para 1 de Janeiro de 2015.”

            11. Em síntese, prevê o artigo 2.º do diploma em apreço que o prazo – 1 de Janeiro de 2012 - previsto no n.º 3 do artigo 5.º do Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14 de Abril é, no âmbito territorial da Região Autónoma da Madeira, alargado para 1 de Janeiro de 2015.

 

            IV – A razão de ser da rejeição de assinatura do decreto sob apreciação

 

            12. O regime jurídico constante do Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14 de Abril transpôs, para a ordem jurídica interna, a Directiva n.º 1999/74/CE, do Conselho, de 19 de Julho de 1999, que estabelece as normas mínimas relativas à protecção das galinhas poedeiras e a Directiva n.º 2002/4/CE, da Comissão, de 30 de Janeiro de 2002, relativa ao registo de estabelecimentos de criação de galinhas poedeiras abrangidos pela Directiva 1999/74/CE.

            13. Cumpriu‑se, dessa forma, a obrigação de resultado a que o Estado Português se encontra vinculado à luz do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.

            14. Com efeito, o artigo 5.º, n.º 2 da Directiva n.º 1999/74/CE prevê que os “Estados‑membros zelam porque, a partir de 1 de Janeiro de 2012, seja proibida a criação em gaiolas referidas no presente capítulo” estando aqui em causa o capítulo II daquela directiva referente a disposições aplicáveis à criação em gaiolas não melhoradas.

            15. Ao dispor daquela forma, não pode deixar de se entender que o artigo 5.º, n.º 2 da Directiva n.º 1999/74/CE impôs uma obrigação de resultado aos Estados‑membros não dispondo estes de qualquer margem de discricionaridade relativamente à alteração da data nela fixada – i.e. 1 de Janeiro de 2012.

            16. Nesta decorrência, determina o artigo 5.º, n.º 3 do Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14 de Abril que “a partir de 1 de Janeiro de 2012 é proibida a utilização de gaiolas não melhoradas.”

            17. É justamente este preceito que o diploma em apreço pretende adaptar à realidade regional ao prever, no artigo 2.º, que o prazo “é, no âmbito territorial da Região Autónoma da Madeira, alargado para 1 de Janeiro de 2015.”

            18. Porém, ao fazê-lo, a Assembleia Legislativa desvirtua não apenas o disposto no artigo 5.º, n.º 3 do Decreto‑Lei n.º 72‑F/2003, de 14 de Abril mas, sobretudo, o artigo 5.º, n.º 2 da Directiva n.º 1999/74/CE.

            19. Ora, como é unanimemente reconhecido, a obrigatoriedade de respeito por normas de Direito da União Europeia pela ordem jurídica interna dos Estados Membros da União Europeia resulta do princípio da primazia ou primado do Direito da União Europeia sobre os direitos nacionais, princípio que enforma o ordenamento jurídico europeu e nacional (assim, cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, pp. 265‑273 eJorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, pp. 93‑95).

            20. Não se questiona a competência legislativa regional para emitir o diploma em apreciação – quer relativamente à matéria em causa quer à luz da possibilidade de proceder à transposição de directivas de harmonia com o artigo 112.º, n.º 8 da Constituição.

            21. Todavia, é meridianamente claro que resulta do diploma aprovado pela Assembleia Legislativa o desrespeito pelo disposto no artigo 5.º, n.º 2 da Directiva 1999/74/CE, do Conselho, de 19 de Julho de 1999, quando se estabelece um prazo para a proibição de utilização de gaiolas não melhoradas diferente do prazo imperativamente determinado naquela Directiva.

            22. Em consequência, está em causa o incumprimento de uma norma de Direito da União Europeia derivado que responsabiliza o Estado, à luz do Direito da União Europeia, ainda que seja decorrente de um acto normativo editado por uma Região Autónoma, como resulta claramente da jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia (cfr. inter alia acórdão Comissão/Alemanha, proc. 131/88, de 28 de Fevereiro de 1991, in Colectânea, pp. 825 e segs. e acórdão Comissão / Alemanha, proc. 301/95, de 22 de Outubro de 1998, in Colectânea, pp. 6135 e segs.).

23. Ora sempre que um Estado adopta ou mantém, na sua ordem jurídica interna, um acto de carácter legislativo ou infralegislativo incompatível com o Tratado ou com o Direito da União Europeia derivado e, bem assim, quando o Estado, em consequência de medidas que adopta ou deixa de adoptar, se furta à execução completa e tempestiva de qualquer obrigação comunitária, fica colocado em situação de violação do Direito da União Europeia, susceptível de desencadear uma acção por incumprimento.

24. A acção por incumprimento, regulada nos artigos 258.º a 260.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) pode ser proposta pela Comissão Europeia ou por qualquer um dos Estados-Membros, podendo implicar, quando se considere que o Estado-Membro em causa não cumpriu a obrigação de resultado ou a obrigação de comunicar as medidas de transposição de uma directiva adoptada de acordo com um processo legislativo, o pagamento, pelo Estado, de uma quantia fixa ou da sanção pecuniária compulsória que considere adaptada às circunstâncias (cfr. artigo 259.º, n.º 3 do TFUE) na esteira do que resultava já, no passado, do Tratado da Comunidade Europeia (assim, cfr. Fausto de Quadros, Direito da União Europeia, Almedina, Coimbra, p. 405, e João Mota de Campos e João Luiz Mota de Campos, Manual de Direito Comunitário, Coimbra Editora, Coimbra, p. 450).

            Na decorrência do exposto, e como resulta do Direito da União Europeia originário (TFUE), da jurisprudência comunitária e da doutrina, o diploma em apreço traduz uma situação de incumprimento da Directiva n.º 1999/74/CE do Conselho de 19 de Julho de 1999, que estabelece as normas mínimas relativas à protecção das galinhas poedeiras e da Directiva n.º 2002/4/CE da Comissão, de 30 de Janeiro de 2002, relativa ao registo de estabelecimentos de criação de galinhas poedeiras abrangidos pela Directiva 1999/74/CE, susceptível de desencadear a propositura de uma acção por incumprimento contra o Estado Português, de harmonia com o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, circunstância que pode, a final, implicar o pagamento de quantia fixa ou de sanção pecuniária compulsória pelo Estado Português, o que impõe manifestamente que o diploma em causa seja devolvido à Assembleia para sua reapreciação.

            Apresento a Vossa Excelência

            Funchal, 1 de Março de 2012

O REPRESENTANTE DA REPÚBLICA 

Ireneu Cabral Barreto