Alocução na Sessão de abertura do XI Encontro Literário de Leitura em Voz Alta
Foi com grande satisfação que acedi ao convite da Senhora Presidente da Associação Contigo Teatro, Dra. Maria José Varela da Costa, para acolher e presidir no Palácio de São Lourenço a sessão de abertura do XI Encontro Literário de Leitura em Voz Alta Ler com Amor.
Por vários motivos:
Antes de mais, pelo genuíno apreço que me merece esta dinâmica associação, que assinala em 2024 os seus 25 anos de consistente atividade.
Assinalo, entre os seus vários projetos, os que visam dinamizar a leitura junto das camadas mais jovens, e que se inscrevem no âmbito de uma causa que me é cara, a do conhecimento da língua portuguesa e daqueles que a cultivaram, através de obras literárias com significado universal, como são exemplo Jorge Amado, Vinícius, Paulina Chiziane, Craveirinha, Pepetela, Baltazar Lopes ou Alda do Espírito Santo.
No exercício deste cargo, pretendi contribuir para incentivar esta identificação dos jovens com a nossa língua, instituindo em 2013 o Concurso “Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas”, dirigido aos alunos dos estabelecimentos de ensino básico, secundário ou profissional da Região Autónoma da Madeira.
Entendi que o 10 de junho não deveria ser mais um feriado ou um banal memorialismo, propondo aos jovens a livre reflexão e produção de textos sobre as temáticas nele evocadas. Dez anos passados, continuamos a ser anualmente surpreendidos por novos e originais trabalhos, que os alunos participantes leem em voz alta em sessão própria, nesta mesma sala, por ocasião do Dia de Portugal.
Devo ainda sublinhar a pertinência do subtema proposto para este XI Encontro Literário, no ano em que se comemora os 50 anos do 25 de abril: Ler com Amor sem medos e sem limites é uma conquista do 25 de abril e um repto a que os jovens atuais podem corresponder, sem os obstáculos enfrentados pela minha geração, que cresceu com a censura do Estado Novo.
Detenho-me brevemente nesta questão da censura literária, que permite valorizar devidamente o que é poder hoje, em liberdade, ler “sem medos e sem limites”.
A censura literária condicionou os poetas e escritores portugueses em diversos períodos da nossa história. Desde logo, a Inquisição questionou Camões, prendeu o Padre António Vieira, julgou o Cavaleiro de Oliveira e executou António José da Silva, "o Judeu".
Mais tarde, durante o Estado Novo, a Constituição Portuguesa de 1933 estabeleceu, no seu artigo 3.º, que a função da censura será "impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a moral, a boa administração e o bem comum, e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade".
No cumprimento deste imperativo censório, o famoso "lápis azul” cortava os textos considerados impróprios, mesmo em relação à literatura infantojuvenil. Sobre esta, a Direção dos Serviços de Censura considerava que "parece desejável que as crianças portuguesas sejam cultivadas, não como cidadãos do Mundo, em preparação, mas como crianças portuguesas que mais tarde já não serão crianças, mas continuarão a ser portugueses".
Os livros não eram sujeitos a censura prévia, mas podiam ser apreendidos depois de publicados, sendo frequentes as buscas às livrarias. Com a substituição de Salazar por Marcelo Caetano, pouco mudou a não ser o nome: a Censura Prévia passa a designar-se Exame Prévio.
Este sistema sempre me intrigou em relação ao livro do nosso Horácio Bento de Gouveia, “a Canga”.
Este livro foi, segundo o Autor, publicado inicialmente com o título “os Ilhéus”, e sem alguns capítulos que teriam sido censurados.
Pergunto-me: teria o autor pedido à Censura uma análise prévia do livro?
Recordo que a censura era rigorosa, apreendendo frequentemente os livros que se afastassem da doutrina oficial e perseguindo os seus autores.
Como exemplo, devido à publicação da sua obra conjunta "Novas cartas portuguesas", crítica mordaz à condição da mulher em Portugal considerada imoral em 1972, Maria Velho da Costa, Maria Teresa Horta e Maria Isabel Barreno enfrentaram um processo judicial que ficou famoso e só terminou com o 25 de abril.
Mas, porque a liberdade de pensamento resiste a todas as formas de censura, liam-se então livros e textos proibidos, secretamente e com risco pessoal. Lembro-me de ter lido, enquanto de estudante em Coimbra, o livro de Mário Soares, “Le Portugal Baillonné” e a urgência que havia em comprar os Diários de Miguel Torga pois a experiência dizia-nos que eles eram apreendidos mal surgissem em público.
Na altura em que comemoram os 50 anos do 25 de abril, é preciso não esquecer que o fim da censura e a liberdade de expressão foram, sem dúvida, uma das suas grandes conquistas.
Desde logo, porque a Constituição Portuguesa de 1976 voltou a consagrar a liberdade de expressão e informação e a liberdade de imprensa.
A partir de então, ocasionais situações mediáticas associadas a formas de censura foram identificadas, debatidas no espaço público e consensualmente consideradas inaceitáveis.
E, desde que Portugal se vinculou à Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em 1978, esses direitos fundamentais foram reforçados, pois os cidadãos portugueses têm ainda a possibilidade de recorrer ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos se considerarem estar posto em causa o artigo 10º daquela Convenção, que protege a liberdade de expressão.
Durante mais de doze anos como juiz naquele Tribunal, pude assistir à lenta, mas decisiva evolução dos nossos Tribunais para assimilarem que a liberdade de expressão constitui um dos princípios fundamentais de uma sociedade democrática e que, por mais grave que seja o seu abuso, penas privativas de liberdade não são aceitáveis para sancionar essas infrações.
É tempo de celebrar estas conquistas decorrentes do 25 de abril, e com elas a possibilidade de escrever e publicar, e de livremente ler em voz alta, como bem propõe e põe em prática a Associação Contigo Teatro.
Com o maior gosto, na data em que se assinala o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios Históricos, acolho os participantes do XI Encontro Literário Ler com Amor sem medos e sem limites.
Nesta ocasião, felicito a organização pela qualidade do programa apresentado, que se desenvolverá nos próximos dias, e formulo os melhores votos de sucesso para os trabalhos deste Encontro Literário, que de imediato se iniciarão com a homenagem a Marta Cília, madrinha deste evento, e para a continuidade das atividades da Associação Contigo Teatro em prol da cultura na Região Autónoma da Madeira.
Funchal,18 de abril de 2024