Intervenção na sessão de abertura do XII congresso dos Juízes Portugueses

DISCURSO DO REPRESENTANTE DA REPÚBLICA PARA A REGIÃO AUTÓNOMA DA MADEIRA NA ABERTURA DO XII CONGRESSO DOS JUÍZES PORTUGUESES, NO DIA 16 DE MARÇO DE 2023 

É com enorme satisfação que a Madeira acolhe o XII Congresso dos Juízes Portugueses.

Na qualidade de Representante da República para a Região Autónoma da Madeira, quero expressar público agradecimento à Direção da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, na pessoa do seu Presidente, pela escolha do local para este Congresso.

Estou certo de que este evento deixará a sua marca e ficará na memória de todos, não apenas pela beleza do local onde se realiza, mas, sobretudo, pela relevância dos temas em discussão, num momento decisivo para a Justiça em Portugal.

Concedam V. Exas. a um Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça jubilado o expressar do sublime orgulho que sente na magistratura portuguesa e a honra, portanto, na presença nesta sessão.

Nunca esqueci, nem esquecerei, a minha relação fraterna com a Magistratura em que fui quase tudo; permitam que recorde o tempo em que ajudei a recrutar e a formar com escassos meios mas com enorme entusiasmo, ainda antes do CEJ, elementos para a Magistratura do Ministério Público.

 Ver o percurso dessa geração de Magistrados que atingiram elevados patamares suscita em mim um sentimento de realização e de dever cumprido e alimnenta a enorme esperança no futuro da classe, com uma seleção rigorosa, com formação adequada para a resolução dos problemas e resiliente em situações de tensão ou de exposição pública.

O tema do presente Congresso não poderia ser mais atual: “Democracia, Direitos, Desenvolvimento”. Uns não se realizam sem os outros, e nenhum se concretiza sem os Tribunais enquanto órgãos de soberania que administram a justiça em nome do povo.

Como referiu o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, no discurso de abertura do ano judicial, não há democracia sem justiça.

Sem Tribunais não há efetiva realização dos direitos, pois estes não podem ficar simplesmente a cargo da administração pública ou ao nível do seu estabelecimento normativo pelo legislador.

Com efeito, os litígios expressam desacordos sobre direitos e deveres que tantas vezes envolvem os próprios poderes públicos como parte, sendo então os Tribunais o “terceiro imparcial” que garante a aplicação de um direito justo.

Por outro lado, os demais poderes, politicamente motivados ou em última análise sempre dependentes do poder político (como acontece com a administração pública) têm preocupações que não se contêm na análise “do caso” com uma ponderação exclusivamente dedicada ao mesmo.

Dessa análise cuidada, mas também do julgamento da atuação dos poderes públicos — incluindo do próprio poder judicial — depende por seu turno a democracia.

A democracia não se esgota nos processos eleitorais e na responsabilidade política dos titulares de cargos públicos. É muito mais complexa e profunda do que isso. Implica distanciamento entre quem faz a lei e quem a aplica. Dessa distância, aliás, depende a confiança dos cidadãos no sistema democrático.

É típico dos sistemas autocráticos e das atualmente chamadas “democracias iliberais” a redução ou mesmo eliminação dessa distância entre poder político e poder judicial.

Veja-se o que se passa nalguns Países, mesmo na nossa velha Europa, onde o Estado de direito está longe de ser cumprido, assistindo-se a intensa interferência do poder político no poder judicial, mostrando um problema atual, real, preocupante, potencialmente expansivo, e relativamente ao qual temos o dever e o propósito de dar o exemplo.

É muito importante que a atividade dos Tribunais seja transparente, que a opinião pública possa acompanhá-la devidamente e de modo esclarecedor, e que o próprio poder político o possa fazer.

Mas são necessárias muitas — todas — as cautelas neste domínio, por forma a que o princípio da separação de poderes não seja beliscado, e não se suscite sequer qualquer dúvida a respeito da relação entre poder político e poder judicial.

Se há algo que os exemplos que anteriormente referi mostram é que as entorses intoleráveis à separação de poderes — à democracia — começam nas pequenas coisas.

 Não queremos correr esse risco, temos de preservar a confiança do cidadão na sua Justiça, pelo que temos de ser cuidadosos para não sermos traídos pelas melhores intenções.

A justiça é também uma condição do desenvolvimento social e económico.

No plano social, é fundamental a igualdade no acesso à justiça. Longe de ser um tema novo, a igualdade no acesso à justiça está ainda infelizmente distante de um plano satisfatório. A justiça é cara e de acesso complexo, conduzindo a que, na prática, nem todos a ela possam aceder ou nem todos o consigam fazer em igualdade de circunstâncias.

É certo que as condições económicas de cada um são determinantes para a sua taxa de esforço no acesso a quaisquer recursos, públicos ou privados.

Mas a justiça — como a saúde — não é um recurso qualquer, ao qual as pessoas decidem livremente recorrer. É antes uma necessidade que o Estado tem o dever absoluto de satisfazer, a bem dos direitos individuais, mas também da paz social.

No plano económico, a Justiça é também uma condição de desenvolvimento.

A iniciativa económica, nacional, mas também estrangeira em território nacional, ressente-se da morosidade, da complexidade dos procedimentos e do processo. Essa não pode ser uma preocupação imediata dos Tribunais, mas antes do poder político, é certo. Em todo o caso, depende também do Poder Judicial a identificação dos estrangulamentos a ultrapassar e a cooperação com o poder político na busca de soluções. Este Congresso é um momento de reflexão fundamental para esse efeito.

Por tudo isto, os recursos de que o sistema de justiça carece são inadiáveis. Este aspeto é capital. Não só mais recursos, materiais e humanos, mas melhor organização dos mesmos, que é certamente possível. Aqui os Tribunais dependem essencialmente das opções do poder político — e nisto se joga a democracia e a perceção do “ambiente democrático” por parte dos cidadãos.

Tais opções de recursos têm de levar em conta a realidade do País, como tão-pouco pode deixar de ser com outras opções em matéria de organização e de procedimentos, como alertou o Senhor Presidente da República no seu discurso na abertura do Ano Judicial.

Será um desafio adicional e implica, como o Senhor Presidente da República também sublinhou, consensos vários, pois sem eles não haverá ambiente nem pacificador, nem reformador.

Os Tribunais não são máquinas de produção de decisões judiciais. Mas sendo esse o resultado típico da sua atividade, não podemos ignorar que é em boa parte por esses resultados que se fará a avaliação da sua função.

Assim, devemos estar abertos a todos os instrumentos que possam ajudar nessa tarefa, sem nos perdermos no essencial.

Muito embora hoje esteja na ordem do dia a discussão sobre as virtudes da utilização de algoritmos para decidir pedidos mais simples, isso não relega nem relegará jamais o Juiz para os arquivos da História.

Sim, o futuro é tecnológico e a Justiça tem de saber viver nesse Mundo.

Sem abandonar os seus símbolos e a sua liturgia, sem perder os seus ritos identitários, a Justiça tem que saber utilizar a tecnologia para se tornar próxima dos cidadãos e, com isso, reforçar a sua legitimidade.

O Juiz é um prudente, um ponderador, e precisa de tempo, experiência — e hoje mais do que nunca, formação contínua — para cultivar tais virtudes e concretizá-las em decisões justas.

Naturalmente, quanto mais instrumentos eficazes tiver ao seu dispor, da inteligência artificial à robótica, melhor será o seu desempenho e mais eficaz o seu funcionamento.

Por isso, este momento é também de reflexão sobre o uso desses novos meios, quais os seus limites e regras, tendo sempre presente que o fator humano jamais pode ser descurado e, neste plano, deve ser impulsionada enérgica e decididamente a carreira de assistentes judiciais e administrativos, de modo a que os magistrados tenham mais disponibilidade para aquilo que é o seu múnus indeclinável: decidir com justiça.

Num processo equitativo, decidir com justiça, implica a imparcialidade e a independência dos juízes face a pressões de qualquer espécie, respeito pelo contraditório e igualdade de armas, decisões motivadas numa linguagem clara e acessivel ao cidadão e num prazo razoável para não afetar a sua eficácia e credibilidade.

Vivemos tempos de incerteza.

Ainda mal refeitos da pandemia da Covid-19, não sabemos se a guerra na Ucrânia escalará. Não sabemos se a economia encontrará estabilidade nos tempos mais próximos. Não sabemos quais vão ser as consequências dos movimentos migratórios, mais ou menos massificados. Não sabemos que transformações sociais, económicas e políticas poderão as alterações climáticas trazer.

Estas e muitas outras incertezas estão fora da nossa capacidade de previsão, e só muito limitadamente estão nas nossas mãos. Já o mesmo não pode dizer-se da estabilidade das nossas instituições, que dependem essencialmente de nós. Devemos, pois, fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para assentar e sedimentar as condições das nossas instituições, porque disso depende em primeira linha a nossa democracia, os nossos direitos, o nosso desenvolvimento.

Os últimos tempos trouxeram à sociedade portuguesa um clima de instabilidade e desconfiança motivado por casos que têm consequências para o funcionamento da democracia.

Os cidadãos não podem viver com a dúvida de saber se os titulares de instituições públicas ou de outra ordem beneficiam e abusam ilegitimamente dessas posições. Em democracia essa dúvida é insuportável, mina o “contrato social” e transporta o pernicioso exemplo de que não há limites para quem detém uma posição de poder ou de privilégio.

Os magistrados têm de estar forçosamente imune a esse tipo de questões. O Juiz tem uma carreira, um cursus honorum, totalmente distinto da rotatividade dos demais cargos públicos, designadamente os de natureza política. Isso é também uma fundamental garantia da democracia e é importante que como tal seja percecionado pelos cidadãos.

Não tenho dúvidas em afirmar que dos Tribunais e da Magistratura depende o futuro da democracia, não apenas uma democracia formal, não apenas uma democracia de procedimentos, mas uma democracia substantiva na qual o sentimento de justiça não é uma simples quimera.

Termino, fazendo votos do maior sucesso para os trabalhos do Congresso, para bem da Justiça do nosso País, Portugal.

           

Muito obrigado.

Funchal, 16 de março de 2023