Intervenção na conferência “As recentes alterações ao Código Penal, Código de Processo Penal e leisconexas - caos ou combate à corrupção?” a 18 de fevereiro

Conferência : 

“As recentes alterações ao Código Penal, Código de Processo Penal e leisconexas - caos ou combate à corrupção?”

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       Agradeço antes de mais o convite para estar presente nesta sessão de abertura.

       E quero começar por saudar a realização desta Jornada de reflexão, que me parece de imensa oportunidade, pela atualidade dos temas que propõe, reunindo um grupo de tão competentes especialistas.

       Para mim, particularmente, permitiu-me regressar e reviver os tempos em que os Códigos Penal e Processo Penal eram os meus instrumentos de trabalho quotidiano.

       Por tudo isto, quero felicitar a Presidente do Conselho Regional da Ordem dos Advogados, Dra. Paula Margarido, por mais esta iniciativa e desejo a todos os participantes uma jornada profícua no esclarecimento de matérias de muita complexidade.

       O tema é de extrema pertinência. Na verdade, é das matérias mais relevantes para um povo como comunidade política, na medida em que a corrupção e crimes afins constituem um desvio à igualdade de oportunidades, que é pedra de toque de qualquer sociedade organizada.

       A corrupção está entre os fenómenos sociais que mais mina a confiança entre os cidadãos.

       Mas a corrupção destrói também a confiança dos cidadãos nas instituições, sendo esta a sua faceta mais discutida.

       Neste domínio, releva a conduta dos servidores públicos e, em especial, dos titulares de cargos políticos e dos assim designados altos cargos públicos.

 A corrupção, em tal contexto, provoca efeitos ainda mais perniciosos, acicatando a perceção de que a lei não é igual para todos.

       Penso não exagerar ao considerar que a legislação recentemente publicada abre um ciclo novo no combate à corrupção e crimes afins.

       Sabendo que o fenómeno da corrupção ofende a essência da democracia e os seus princípios fundamentais, designadamente os da igualdade, transparência, livre concorrência, imparcialidade, legalidade, integridade e a justa distribuição da riqueza, como se realça no preâmbulo do Decreto-Lei nº 109-E/2021, de 9 de dezembro, a questão a que urge responder prende-se com a justeza, o equilíbrio e a proporcionalidade das soluções agora consagradas, que constituem também uma vertente fundamental da sua conformidade constitucional.

       Algumas delas, como a delação premiada, poderão chocar por resultados eventualmente imorais decorrentes da sua aplicação concreta: pense-se na hipótese de o indivíduo mais importante de um esquema criminoso denunciar os outros participantes para beneficiar de uma isenção de pena.

       Mas, mesmo assim, a esta figura, já experimentada noutros sistemas jurídicos, deverá ser dada a oportunidade de mostrar a sua eficácia, esperando que os seus eventuais efeitos mais controversos possam ser minimizados pela ponderação dos magistrados judiciais e do Ministério Público que tiverem de os analisar.

       Por outro lado, permitam-me alguns minutos para vos dizer da minha inquietação perante a figura do “enriquecimento ilícito” e da solução finalmente consagrada.

       Portugal ratificou, a 28 de outubro de 2007, a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, que preconiza classificar como infração penal “o aumento significativo do património de um agente público para o qual ele não consegue apresentar uma justificação razoável face ao seu rendimento legítimo”.

       Ao ratificar esta Convenção, Portugal obrigou-se a consagrar como crime tal situação.

       Todos nós conhecemos as dificuldades encontradas para definir a tipicidade de tal crime através de uma lei certa, clara, precisa e previsível e que respeite o princípio da presunção de inocência, conjugado com o direito ao silêncio e ao de não contribuir para a sua auto-incriminação.

       Perante esta dificuldade, alguns Estados não admitem a criminalização do enriquecimento injustificado, esperando que outros instrumentos destinados a combater a criminalidade económica possam suprir essa lacuna.

       Pelo meu lado, e salvo maior aprofundamento, entendo que a solução encontrada não colide com aqueles princípios estruturantes, a dois níveis.

       Primeiro, afigura-se-me que a “tipicidade” está assegurada com a descrição precisa de uma situação objetiva: o aumento significativo de património.

       Segundo, a presunção de inocência; aqui residirá a maior dificuldade, quando se exige que o visado justifique a origem do aumento dos seus rendimentos.

       Mas, em democracia, com exceção de alguns direitos fundamentais ligados à dignidade da pessoa humana, não há direitos absolutos; todos podem sofrer restrições para harmonizá-los com outros interesses ou direitos merecedores de igual ou superior proteção, o que remete para uma ponderação ao abrigo do princípio da proporcionalidade.

       Ora, como se sabe, as regras de experiência ensinam que existem relações razoavelmente constantes entre a ocorrência de certos factos e a de outros, o que permite formular juízos probabilísticos sempre que se tenha conhecimento daqueles.

       As presunções não são fonte nem meios de prova em processo penal, pois não são capazes de oferecer uma certeza absoluta na reconstrução dos factos.

       Mas elas poderão indiciar um quadro que exija do visado que não continue silencioso, mas que dê explicações.

       Como constitui Jurisprudência pacífica do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, o direito a um processo equitativo permite a um acusado guardar silêncio, não contribuindo para a sua própria condenação.

       O direito ao silêncio e o de não contribuir para a sua própria incriminação, se bem que não sejam mencionados no artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, são normas geralmente reconhecidas como fazendo parte da noção de processo equitativo ali consagrado.

       Porém, aquele Tribunal afirmou que saber se o retirar do silêncio conclusões desfavoráveis para o acusado viola o disposto no artigo 6.º da CEDH exige a ponderação de um conjunto de circunstâncias, tendo em conta, em particular, o caso onde se procedeu a deduções, o peso que as jurisdições internas lhe atribuíram ao apreciarem os elementos de prova e o grau de coerção inerente à situação.

       Nesta sua avaliação, o Tribunal entendeu que as jurisdições nacionais não podem concluir pela culpabilidade do arguido simplesmente porque este decidiu guardar silêncio. Apenas quando as provas da acusação requerem uma explicação que o arguido está em condições de fornecer, dessa omissão se poderá concluir, por um simples raciocínio de bom senso, que não existe nenhuma explicação possível e que o arguido é culpado.

Mesmo assim, admito que restem algumas dúvidas sobre como este novo esquema funcionará na prática e quais serão os resultados que dele se poderão obter ao nível da transparência na Administração Pública.

       Mas é uma batalha que merece ser travada ainda que os resultados venham, a final, a ser pouco significativos.

      Espero que, ao fim do dia, as dúvidas e as interrogações que deixo, e outras que da vossa discussão possam emergir, sejam superadas ou, ao menos, minimizadas.

       Uma administração da Coisa Pública que se rege pelos princípios vigentes num Estado de Direito democrático, nomeadamente a igualdade, a imparcialidade e a legalidade é o que sonho para o meu País.

       Para que este sonho possa ser realizável espera-se o esforço de todos aqueles que colocam a Justiça como um objetivo maior a alcançar.

       Desejo os maiores sucessos a estas Jornadas, pois o tema em si e a situação do nosso País assim o merecem e exigem.

Funchal, 18 de fevereiro de 2022