Jornadas sobre Branqueamento de Capitais

Jornadas sobre Branqueamento de Capitais

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Organizadas pelo Conselho Regional da Madeira da Ordem dos Advogados

Centro de Congressos da Madeira,

16 de outubro de 2020

Saúdo a organização deste evento, com a qual me congratulo, porquanto a temática do branqueamento de capitais já não é simplesmente atual e necessária: é, na verdade, inevitável e urgente.

Ademais, como sabemos, o branqueamento de capitais – ou, numa terminologia mais contundente, a lavagem de dinheiro – não se limita a estabelecer conexões com o financiamento do terrorismo.

Numa sociedade aberta, os riscos multiplicam-se, e tanto mais intensamente quanto mais acarinhadas são as liberdades fundamentais, desde logo as liberdades ligadas à circulação de pessoas, bens e capitais.

Portugal é uma sociedade de partilha civilizacional, acolhendo várias nacionalidades, por onde passam múltiplas iniciativas económicas, se encontram culturas da maior diversidade, e na qual circulam pessoas e capitais de distintas proveniências. A riqueza que deriva destas circunstâncias acarreta, porém, riscos.

Isto é um desafio. Não exageraremos, certamente, se dissermos que se trata de um dos maiores desafios para o futuro: no fundo, ao falarmos de verificações preventivas e repressivas do branqueamento de capitais – as que incidam sobre a colocação, circulação ou integração, as três fases do processo de branqueamento tipificadas pelo GAFI –, estamos sempre a pisar um terreno de articulação fina entre liberdade e segurança, dicotomia que se estende a tantos campos das nossas vidas.

Ainda numa perspetiva ampla, atrevo-me a afirmar que a saúde da nossa democracia, do nosso Estado de Direito, será medida pelo equilíbrio que nesta relação – liberdade e segurança – conseguirmos introduzir, manter, e definitivamente incorporar na consciência coletiva.

E lembremo-nos que estamos no limiar de mais uma revolução digital.

A forma como as nossas sociedades se venham a adaptar a um novo mundo que apenas começamos a imaginar determinará muito do nosso futuro coletivo.

As potencialidades deste futuro são imensas, nomeadamente no plano das liberdades. Mas, com as mais amplas liberdades vêm ­ — sublinho — os maiores riscos.

E a todos nós cabe, em cada momento, descobrir as melhores práticas para que liberdades e riscos possam conviver da forma mais segura para todos.

Esta preocupação não é nova e tem estado no centro das atenções das instâncias europeias.

A União Europeia tem já largo acervo, principalmente desde os anos 90, de direito derivado a respeito da utilização do sistema financeiro para a lavagem de dinheiro.

Por seu turno, no âmbito do Conselho da Europa, a Convenção Relativa ao Branqueamento, Deteção, Apreensão e Perda dos Produtos do Crime e ao Financiamento do Terrorismo, de 16 de maio de 2005, da qual Portugal é signatário, obriga os Estados, que nela são partes, a adotar as medidas legislativas e outras que se revelem necessárias para combater este flagelo.

É como concretização destas obrigações assumidas perante outros Estados europeus que devemos ver, por exemplo, a organização interna de reguladores, com o objetivo de evitar e investigar o branqueamento de capitais.

Na verdade, todos contam neste combate. Aliás, bastaria atentarmos no programa destas Jornadas, e ver como, para além do regulador bancário, são convocados ao debate os Contabilistas Certificados, os Revisores Oficiais de Contas e os Notários. Em cada uma destas profissões, a prevenção e o combate ao branqueamento de capitais colocam diferentes desafios.

Desafios com os quais os advogados também se defrontam e face aos quais se podem deparar com opções dilemáticas. Digamo-lo com clareza: no centro deste tema está a relação entre advogados e seus clientes, na medida em que deveres públicos impostos aos primeiros nesta área da lavagem de dinheiro podem potencialmente brigar com a confidencialidade, que é pilar essencial da relação entre ambos.

Sabemos bem que os advogados, pela posição que ocupam no sistema de Justiça de uma sociedade democrática, têm que servir como depositários de segredos dos seus clientes.

Este vínculo de confiança entre o advogado e aquele que ao mesmo se dirige em busca de auxílio jurídico é uma condição essencial do exercício dos direitos dos cidadãos e, diria mesmo, da realização do Direito.

Numa profissão fortemente eivada de conteúdo ético como a advocacia, do dever de lealdade para com o cliente, a manutenção do sigilo profissional é uma pedra de toque.

Mas em que circunstâncias deve este princípio ceder?

O TEDH notou que, contrariamente a várias legislações nacionais e ao artigo 8.º, n.º 2, alínea d), da Convenção Americana dos Direitos Humanos, a CEDH não consagra em termos expressos o direito, para o acusado, de comunicar sem entrave com o seu advogado.

Não obstante, este Tribunal sempre afirmou que, se um advogado não pudesse conversar com o seu cliente sem qualquer limitação e receber instruções confidenciais, a assistência perderia muito da sua utilidade, quando o fim da CEDH consiste na proteção dos direitos concretos e efetivos.

Estamos aqui no âmbito do processo, ou melhor, do patrocínio judiciário, onde o segredo profissional impera.

Mas este direito ao segredo profissional tem de ser harmonizado com outros valores consagrados numa sociedade democrática.

Em democracia, com exceção de alguns direitos intrinsecamente ligados à dignidade da pessoa humana, ressalvados no artigo 15º da CEDH, não há direitos nem interesses absolutos; todos podem sofrer restrições para harmonizá-los com outros interesses ou direitos merecedores de igual ou superior proteção, o que remete para uma ponderação ao abrigo do princípio da proporcionalidade.

Registe-se, em primeiro lugar, que o advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes – nº 4 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados.

E todos estamos conscientes de que as buscas aos escritórios de advogados são potencialmente violadoras desse segredo.

A ingerência na correspondência dos presos com os seus defensores constitui, em princípio, um atentado aos direitos consagrados no artigo 8º da CEDH, mas ela será admissível se necessária numa sociedade democrática para alcançar um dos seus objetivos legítimos, seja corresponder a um motivo social imperioso ou a motivos pertinentes e suficientes, no justo equilíbrio entre o interesse público e a vida privada.

Sublinhe-se que estamos a falar das relações entre um advogado e o seu cliente no âmbito de um processo pendente ou futuro e para o essencial do segredo é necessário que haja um nexo entre o que é comunicado ao advogado e o processo.

E os restantes atos praticados profissionalmente pelos advogados?

Aceite-se que a amplitude do segredo profissional tal como está plasmada no nº 2 do artigo 92º do Estatuto da Ordem dos Advogados deve também sofrer restrições destinadas à salvaguarda de outros interesses merecedores de proteção, e no que importa, o do combate ao crime de branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo.

Compreenderão que invoque aqui um aresto do TEDH.

Não por qualquer viés corporativo, mas pela circunstância de o caso Michaud c. França (06/12/2012) ser um leading case da jurisprudência do TEDH neste domínio.

Estava em causa a obrigação dos advogados franceses, emergente da transposição de diretivas europeias, de relatar às autoridades as suas suspeitas de possíveis lavagens de dinheiro por parte dos seus clientes.

O TEDH foi muito claro na sua posição: neste domínio, não há direitos absolutos, desde que a afetação dos mesmos prossiga um fim legítimo, à luz da CEDH, e a proporcionalidade seja respeitada.

 Espero que, ao fim do dia, as dúvidas e as inquietações de todos aqueles, incluindo os advogados, que sejam chamados a uma atitude proativa no combate ao branqueamento de capitais e financiamento do terrorismo venham a ser superadas ou, ao menos, minimizadas, porquanto estas matérias vão ser discutidas de forma erudita e pelos doutos participantes.

Desejo maiores sucessos a estas Jornadas.

O tema assim o merece e exige.

Muito obrigado.

Funchal, 16 de Outubro