Elogio a Kay Rala Xanana Gusmão

Elogio do Juiz Conselheiro e Representante da República para a Madeira, Ireneu Cabral Barreto, por ocasião do Doutoramento honoris causa pela Universidade da Madeira a Ray Kala Xanana Gusmão.

Site _UMa

Foto: DR

É com sentida satisfação que me associo ao Doutoramento honoris causa de Kay Rala Xanana Gusmão, a atribuir pela Universidade da Madeira, apadrinhando o Doutorando.

Em boa hora chegou esta iniciativa da Universidade da Madeira.

Xanana Gusmão simboliza e personifica valores universais e de cosmopolitismo, síntese invulgar numa só pessoa:

-      a luta pelos direitos humanos e pela liberdade;

-      a transição política norteada pela paz e pela identidade do povo timorense;

-      a integração internacional.

Enfim, o trabalho incansável pela vida digna de um povo durante demasiado tempo amarrado, silenciado, roubado na sua dignidade.

E, conquistada a vitória, uma imensa generosidade, visível na grandeza de saber perdoar, unindo todos numa só Pátria, e reconciliando-a com o opressor do passado.

Nobreza, também, no desapego ao poder e no trabalho persistente na passagem do testemunho às gerações seguintes.

Kay Rala Xanana Gusmão nasceu em Manatuto, a 20 de Junho de 1946.

Xanana Gusmão foi — e é — um resistente.

No início da década de oitenta, sobre os seus ombros recaiu a árdua tarefa de liderar uma resistência que travava uma luta desigual.

Durante cerca de dez anos serviu como Comandante-em-Chefe das Forças Armadas de Libertação Nacional de Timor-Leste, devolvendo-lhes a esperança numa liberdade tão almejada por tanto tempo.

E, como foi duro esse caminho: em 1991, assistiu ao massacre de Santa Cruz, onde homens, mulheres e crianças indefesos, rezando em português, foram trespassados por balas assassinas, numa das maiores violações dos direitos humanos do final do século XX.

O massacre de Santa Cruz, paradoxalmente, colocou a então adormecida questão de Timor na agenda jurídico-política internacional, despertando as nossas consciências para a justiça da luta libertadora do povo maubere.

Neste contexto, direi com Rui Cinatti: “Timor cresceu como um grito ecoando em todos nós”.

Essa luta não esmoreceu, mesmo quando Xanana Gusmão foi preso a 20 de novembro de 1992; e, quando o Mundo tomou conhecimento da sua captura, fez-se ecoar também a consternação de todos aqueles que, como nós, nele viam o “Mandela asiático” que representava a esperança na libertação do povo timorense de anos de jugo e violência.

Seriam sete indescritíveis anos de cativeiro, dos quais só o próprio pode dar testemunho, que ficam para a história como referência para todas aquelas lutas que não podem deixar de ser travadas.

Não exagero se afirmar que a emoção foi total aquando da sua libertação, em setembro de 1999, um momento aguardado e por todos interpretado no seu significado de terminus de uma inaceitável injustiça.

Este sentimento culminaria na atribuição do Prémio Sakharov para a Liberdade de Pensamento, pelo Parlamento Europeu em 15 de dezembro de 1999.

Permitam-me que recorde o privilégio que tive ao contactar, em Estrasburgo, com o Presidente Xanana, quando ali se deslocou para receber este prémio.

A um homem que tinha deixado o cativeiro há menos de 3 meses não vislumbrei qualquer sentimento negativo, mas sim expressões de fraternidade, de amor ao próximo e de paz. 

Após a sua libertação, teve início uma nova fase na vida de Xanana Gusmão.

Para trás ficavam as armas, a luta irrecusável, a incerteza do dia seguinte, a violência, o cativeiro.

O passado de resistente dava, pois, lugar a uma nova vida atuante, de luz, no seio das forças políticas civis, empenhada na construção da democracia, de um Estado independente, respeitado e reconhecido.

Não podia Xanana Gusmão ignorar o apelo democrático do seu povo.

Entre maio de 2002 e maio de 2007 assume as funções de Presidente da República, ficando para a história como o primeiro Presidente da República Democrática de Timor-Leste.

A transição que o País conheceu nesta altura ficará para sempre associada ao seu nome: para sempre, a independência de Timor-Leste se confundirá com Xanana Gusmão.

Sendo um homem de desafios, abraça depois uma nova missão, assumindo, em agosto de 2007, o cargo de Primeiro-Ministro.

É um momento de intensa atividade democrática, de procura de consensos, numa sociedade que, com as fragmentações naturais de quem ainda há poucos anos saíra de um processo de resistência armada, estava a habituar-se às dinâmicas de uma nova realidade: o convívio em paz, no respeito dos direitos e deveres de cada cidadão, inerentes a um Estado de direito.

Abraçando o espírito saudável de uma sociedade democrática e, portanto, feita de diferenças, de aspirações diversas, de debate.

Não seria esta a última vez em que Xanana Gusmão assumiria funções governativas, após renunciar ao cargo de Primeiro-Ministro, em fevereiro de 2015, numa salutar abertura de espaço democrático para uma nova geração de políticos timorenses, com novas energias e novos sonhos.

A grande experiência acumulada e o imenso prestígio internacional granjeado exigiam ainda mais uma contribuição no Governo de Timor, exercendo o cargo de ministro do Planeamento e Investimento Estratégico, que ocupou até ao recente mês de setembro.

Atualmente, Xanana Gusmão serve Timor-Leste no âmbito internacional, como Pessoa Eminente do Conselho de Assessoria do g7+, sendo Chefe da Equipa de Negociações das fronteiras marítimas, nomeado pelo Governo de Timor-Leste.

O nosso doutorando pode orgulhar-se do seu País, um Estado respeitado e admirado no concerto das Nações, um Estado de Paz e de progresso, generoso para com os seus amigos em momentos de dor, como Portugal e, em particular, esta Região podem testemunhar.

Ao Pai da Pátria Maubere, abre-se agora um novo percurso, de inspiração pedagógica, iluminando os que lhe sucedem e o Mundo com o seu exemplo e o seu saber.

Xanana Gusmão liderou a causa timorense ao longo de cerca de três décadas e meia.

Timor-Leste e o Mundo, agradecidos, concedem-lhe um relativo momento de pausa.

Talvez tenha agora tempo para regressar à pintura e à poesia e continuar a mostrar o seu imenso Amor a Timor.

Com o mesmo sentimento com que escreveu, há já muitos anos, o poema “Pátria”, nesse momento apenas um sonho, mas hoje mais atual e verdadeiro que nunca:

“Pátria é, pois, o sol que deu o ser

Drama, poema, tempo e espaço,

Das gerações que passam, forte laço

E as verdades que estamos a viver”

O que me une — o que nos une — ao Doutorando Xanana Gusmão é, simultaneamente, nosso e universal: nossa e universal, a língua portuguesa; nossa e universal, a luta pelos direitos humanos.

Quem partilha uma língua comunga de muito mais do que de uma linguagem: partilha cultura, referências, contextos; enfim, partilha um entendimento profundo, não simplesmente epidérmico.

Quem partilha a língua portuguesa — talvez só nós o saibamos, verdadeiramente — partilha um mundo que não se explica em qualquer outro falar, partilha sentimentos que só em português se podem dizer, comunga de uma história que é muito mais do que acontecimentos na linha do tempo.

É uma história de afetos, de cumplicidades, de desentendimentos que logo se relativizam e superam e que estavam, desde sempre, destinados a serem ultrapassados.

Hoje, a língua portuguesa tem um fórum de encontro: a Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, costumadamente conhecida por CPLP.

Foi uma ideia luminosa.

Portugal, um dos membros fundadores, orgulha-se deste momento das relações internacionais lusófonas.

E foi com uma satisfação extraordinária que, em 2002, a CPLP acolheu Timor-Leste, que só então, após a independência, pôde tornar-se membro desta organização.

A Xanana Gusmão se deve também a permanência institucional de Timor-Leste neste fórum da língua portuguesa, fazendo jus à História, mas com um grande significado de futuro.

Na verdade, Timor-Leste permanecerá como testemunho e garantia da língua portuguesa na zona do Pacífico.

Nossa e universal, também, é a luta pelos direitos humanos.

O nome de Xanana Gusmão simboliza a necessidade de perpetuar essa luta num Mundo em que os atropelos aos direitos humanos são ainda massificados em muitos lugares.

Seria, porventura, de esperar que, a caminho de se completar a segunda década do século XXI, a consciência e conduta dos Estados e dos povos fossem já mais civilizadas no que toca à proteção e promoção dos direitos humanos.

Infelizmente, não é assim.

Debatemo-nos ainda com discussões de relativismo cultural e com acusações de ocidentalização do Direito Internacional dos Direitos Humanos, que não raramente escondem apenas motivos de conveniência política.

O simbolismo personificado por Xanana Gusmão continuará a ser — estou certo — uma fonte de energia para progressos neste domínio dos direitos humanos e sua tutela.

Xanana Gusmão já foi distinguido inúmeras vezes em termos internacionais, e pelos mais diversos países e instituições. Só para referir os concedidos em Portugal, foi agraciado com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade em 1993 (enquanto estava preso, portanto), e com o Grande Colar da Ordem do Infante D. Henrique, em 2006.

Duas das nossas mais prestigiadas Universidades concederam-lhe o grau de Doutor honoris causa.

Porquê mais uma igual distinção agora pela Universidade da Madeira?

Em síntese: porque é justa.

Porque é da vocação da Universidade fazer e promover a justiça e todos os valores que lhe estão associados; e em especial, os valores da liberdade, da cidadania, da fraternidade e do esforço abnegado.

É essa a tradição da Universidade da Madeira, como em geral, das universidades portuguesas.

Ao associar neste momento simbólico os dois arquipélagos, Timor e Madeira, tão distantes e ao mesmo tempo tão aproximados pela língua, a Universidade da Madeira dá o seu contributo histórico para a imortalização das ideias de liberdade e solidariedade em português.

Por isso, Magnífico Reitor, é com o maior orgulho, satisfação e sentido de dever e gratidão, que peço para Kay Rala Xanana Gusmão as insígnias de Doutor honoris causa.

Muito obrigado.