“O Representante da República: entre a unidade do Estado e a autonomia das Regiões"

O Representante da República para a R.A.M.  proferiu no dia 21 de abril, pelas 15h, no Palácio de São Lourenço, por ocasião da vinda dos auditores do Curso de Defesa Nacional à Região Autónoma da Madeira e da conclusão do Curso Intensivo de Segurança e Defesa – Madeira 4ªedição, uma alocução subordinada ao tema: “O Representante da República: entre a unidade do Estado e a autonomia das Regiões:

A outorga de autonomia na Constituição de 1976

  A Constituição de 1976 correspondeu, finalmente, aos anseios de autonomia da população madeirense, sendo para alguns a mais bela conquista de Abril.

  A partir de então, a Constituição consagrou um regime político‑administrativo próprio dos arquipélagos dos Açores e da Madeira com fundamento “nas suas características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas aspirações autonomistas das populações insulares”, que se traduz na consagração de:

i)                   Autonomia política (existência de órgãos de governo próprios),

ii)                 Autonomia normativa (competência legislativa e regulamentar no âmbito territorial próprio);

iii)               Autonomia administrativa (competências e funções não inteiramente subordinadas à administração central);

iv)               Autonomia económica e financeira (com a garantia de recursos económicos e financeiros adequados e suficientes para a prossecução das tarefas constitucional e legalmente atribuídas às regiões);

  A criação das regiões autónomas constituiu, por isso, uma das mais profundas inovações constitucionais no domínio das estruturas do Estado e trouxe aos dois arquipélagos um conjunto de meios que permitiu uma profunda mudança nas sociedades de ambos os arquipélagos.

 

A COMPETÊNCIA LEGISLATIVA DAS REGIÕES AUTÓNOMAS

Até à revisão constitucional de 2004, a competência legislativa primária das Regiões Autónomas era circunscrita, para além do respeito pela Constituição, por:

(i)        um requisito positivo – versar sobre matérias de interesse específico para as Regiões –;

(ii)      dois requisitos negativos:

  1. a.        não versar sobre matérias reservadas à competência própria dos órgãos de soberania; e
  2. b.        não desrespeitar as leis gerais da República ou, a partir da revisão constitucional de 1997, os princípios fundamentais das leis gerais da República.

Sucede que, na decorrência da revisão constitucional de 2004, e por força do disposto no artigo 227.º, n.º 1, alínea a), passou a determinar-se que as Regiões Autónomas têm o poder, a definir nos respectivos estatutos, de “legislar no âmbito regional em matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo e que não estejam reservadas aos órgãos de soberania“, acrescendo que, nos termos do artigo 228.º, n.º 1, do texto constitucional, “a autonomia legislativa das regiões autónomas incide sobre as matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo que não estejam reservadas aos órgãos de soberania”.

A autonomia legislativa das regiões autónomas foi, por conseguinte, ampliada a partir de 2004.

Como assinalou o Tribunal Constitucional no acórdão n.º 217/2007, a VI Revisão Constitucional, operada em 2004, introduziu significativas alterações no texto constitucional no que respeita à matéria das competências das Assembleias Legislativas das Regiões Autónomas conducentes ao alargamento dos poderes legislativos das Regiões Autónomas.

Essas alterações reconduzem‑se a duas modificações mais significativas:

a)         O desaparecimento da categoria de leis gerais da República, a cujos princípios fundamentais os diplomas regionais se encontravam subordinados;

b)         A eliminação da necessidade de existência de interesse específico regional na matéria regulada pelas Regiões, enquanto pressuposto ou requisito do exercício da competência legislativa destas últimas.

O poder legislativo das Regiões Autónomas continua, porém, a enquadrar-se pelos fundamentos da autonomia das Regiões consagrados no artigo 225.º da CRP e a restringir-se ao âmbito regional às matérias enunciadas no respectivo estatuto político-administrativo.

Subsiste ainda, como requisito de exercício da competência legislativa das Regiões Autónomas, o respeito da reserva de competência legislativa dos órgãos de soberania – como a Assembleia da República e o Governo.

Em particular, e no que diz respeito à reserva absoluta de competência legislativa da Assembleia da República, não se registam alterações, estando esta totalmente vedada às Regiões Autónomas.

Já no que se refere à reserva relativa, poderão as Regiões, salvo as exceções previstas na Constituição, tratar as matérias nela compreendidas, mediante autorização parlamentar (está aqui em causa a chamada competência legislativa derivada ou autorizada, prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 227.º da CRP).

Em síntese, na decorrência da revisão constitucional de 2004, as Regiões Autónomas passaram a ter novos requisitos para o exercício da competência legislativa regional que dependem da verificação cumulativa dos seguintes requisitos:

(i) A legislação editada deve conter-se no âmbito regional;

(ii) As matérias em causa devem estar enunciadas no respectivo estatuto político administrativo ; e

(iii) As matérias não devem estar reservadas aos órgãos de soberania.

Diga-se, no entanto, que os critérios aparentemente simples que a Constituição traça genericamente no artigo 227.º levantam por vezes grandes dificuldades de aplicação prática.

É que esse artigo permite, como vimos, que as Regiões legislem “no âmbito regional” em “matérias não reservadas aos órgãos de soberania”.

Mas nem sempre é fácil saber quando é que, em concreto uma matéria é reservada aos órgãos de soberania, desde logo por haver diferentes níveis de reserva – reserva de densificação total, reserva de regime geral e reserva de bases gerais -, que nos remetem para uma graduação ou ponderação por vezes de grande complexidade.

II

 Representante da República

 

O Representante da República pode definir-se como um órgão constitucional autónomo que se compreende no quadro simultaneamente unitário e autonómico do Estado português ‑ que a Constituição de 1976 inicialmente estabeleceu e se mantem ‑ e cujo estatuto e competências se situam precisamente no âmbito dessa necessária articulação entre o Estado, unitário e soberano, e as Regiões Autónomas, dotadas de autonomia político-administrativa.

Estes princípios previstos na Constituição ‑ a unidade do Estado e as autonomias regionais da Madeira e dos Açores ‑ são de tal modo originários, fundadores ou fundamentais do ponto de vista da organização do poder político do Estado português que a Constituição os consagrou como limites materiais de revisão constitucional.

É neste quadro de organização política da República portuguesa, de que a Constituição e os Estatutos Político-Administrativos pretendem ser expressão, que se compreende o significado do Representante da República, que a Constituição da República Portuguesa prevê no seu artigo 230.º e a legislação regula no Estatuto do Representante da República, a Lei nº 30/2008, de 10 de Julho.

Este órgão constitucional constitui um meio institucional privilegiado de assegurar e promover a necessária articulação e cooperação, no seio da unidade do Estado português, entre a República no seu todo e as Regiões Autónomas na sua diferenciação político-administrativa, diferenciação esta que se funda, como se diz no artigo 225.º da Constituição, nas específicas “características geográficas, económicas, sociais e culturais e nas históricas pretensões autonomistas das populações insulares”.

  Vejamos:

A República portuguesa tem órgãos de soberania – o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo – e as Regiões Autónomas possuem órgãos de governo próprio – a Assembleia Legislativa e o Governo Regional.

Face a este quadro seremos tentados a dizer, com Gomes Canotilho e Vital Moreira, que o Representante da República preenche essencialmente um papel de substituição do Presidente da República no que à respetiva Região Autónoma se refere, e que surge fundamentalmente “em lugar”, “em vez”, do Presidente da República (sem que isto signifique, como é óbvio, pôr em causa as diversas e relevantes competências que o Presidente da República diretamente exerce em relação às Regiões Autónomas).

Esta afirmação de que o Representante da República tem essencialmente um papel substitutivo de marca presidencial é confirmada pelo facto de ter, a nível regional, diversos poderes ou funções análogas aos que o Presidente da República tem a nível nacional.

Pense-se, nomeadamente, nos seguintes poderes ou funções:

i)                   Poder de nomeação e exoneração dos membros do Governo Regional;

ii)                 Poder de veto relativamente a diplomas legislativos;

iii)               Poder de requerer a fiscalização da constitucionalidade e da legalidade dos diplomas legislativos e regulamentares regionais,

iv)               Poder específicos em situações de estado de sítio ou de emergência:

v)                 Funções protocolares de representação do Estado na Região, e, ainda,

vi)               Função de mediação institucional que poderá decorrer dos poderes ou funções acima referidos.

Acresce o facto do Representante da República ser escolhido, nomeado e exonerado, por esse mesmo Presidente da República, tendo o seu mandato, aliás, precisamente a mesma duração que o do Presidente sendo apenas perante responsável perante este (cfr. artigo 3.º do Estatuto do Representante da República).

Mas é necessário ter ainda em conta que essa “substituição” dá-se em nome duma lógica de proximidade à realidade insular.

O Representante da República está ao serviço da República, mas junto da Região Autónoma para que foi designado.

Ele é Representante “da” República, mas “para” ou “numa” determinada Região Autónoma.

Até certo ponto, poderíamos pois dizer que ele surge simultaneamente como representante da Região Autónoma num sentido amplo, o que não é de modo algum contraditório com a ideia de representação da República, dado que as Regiões Autónomas são, também elas, com a sua autonomia, parte integrante da República.

Entendo que o Representante da República não deve esquecer, prima facie, a entidade ético-jurídica que o Representante da República representa na Região: precisamente a “República portuguesa”.

Ora a República Portuguesa, que integra e respeita as autonomias insulares, não é apenas uma quimera sem qualquer contorno positivo, mas um “ideal” com consagração e configuração constitucional, um ideal que tem expressão geral nos dois preceitos preliminares da Constituição.

É, pois, esta República baseada na “dignidade da pessoa humana”, no “Estado de direito democrático” e nos “direitos e liberdades fundamentais”, de índole política, cívica, económica e social, cuja representação está em causa no exercício das funções que desempenho.

É esta República, instituída sob a égide do ideal de “uma sociedade livre, justa e solidária”, que o Representante da República, considerando e respeitando a especificidade e a autonomia regionais, deverá representar e defender ao exercer os seus poderes e competências.

Compreendam, assim, a minha preocupação permanente com o exercício dos direitos e liberdades fundamentais na Região, nomeadamente a liberdade de expressão, de reunião e de manifestação que deve ser exercida apenas com os entraves que derivam da vida numa sociedade democrática, em que eles devem ser harmonizados com o respeito devido aos direitos dos outros, tão respeitáveis como os primeiros.

Por outro lado, tento estar atento ao respeito dos princípios enformadores da coesão nacional: os da subsidiariedade e ou da continuidade territorial, denunciando publicamente fatores potenciadores de violação destes princípios, como por exemplo em matéria de transportes entre as ilhas e o continente (referir ainda o caso da situação de uma equipa desportiva obrigada a disputar as suas provas em território do continente)

É este, em suma, como acima referido, o sentido geral do cargo do Representante da República, assim designado com a revisão constitucional de 2004, como forma de eliminar definitivamente a conotação governamental que teve o Ministro da República, até à revisão de 1997, e permitindo, deste modo, deixar mais clara a conotação presidencial que agora é inerente ao cargo.

  Na verdade, hoje o cargo de Representante da República já não tem a conotação governamental que teve o cargo de Ministro da República, até à revisão constitucional de 1997.

Chegados aqui, podemos afirmar que é no contexto da atividade de produção normativa da Região que reside uma parte substancial da atividade do Representante da República.

Compete, desde logo, ao Representante da República o poder de assinar (ou vetar) os decretos legislativos aprovados pela Assembleia Legislativa Regional e os decretos regulamentares aprovados pelo Governo Regional.

Está aqui em causa uma função preventiva do Representante da República relativamente à legislação regional que implica a apreciação desta à luz da Constituição e do Estatuto Político-Administrativo, e do juízo do Representante da República.

Ao analisar os diplomas enviados pela Assembleia Regional, o Representante da República começará por verificar se existe uma ou mais normas que entenda serem contrárias aos preceitos e / ou princípios da Constituição, tendo, se for caso disso, a possibilidade de requerer a fiscalização preventiva da constitucionalidade ao Tribunal Constitucional, no prazo de 8 dias após a receção de certo diploma.

O Representante da República, ao solicitar a intervenção do Tribunal Constitucional, pretende esclarecer, de forma preventiva, a eventual inconstitucionalidade de normas legais.

Na verdade, frequentemente suscitam‑se dúvidas insanáveis relativas à eventual inconstitucionalidade de diplomas editados na Região que, entende‑se, devem ser apreciados pelo Tribunal Constitucional.

O que significa que a intervenção do Tribunal Constitucional permite, a final, dissipar dúvidas existentes permitindo assim a eventual assinatura (ou devolução) do diploma pelo Representante da República.

Não há, neste contexto, qualquer parte vencida ou parte vencedora.

Alguns exemplos:

Em 9 de Agosto de 2012 foi requerida a apreciação preventiva da constitucionalidade do decreto que proibia o tráfico de “substâncias psicotrópicas”, tendo o Tribunal concluído pela inconstitucionalidade do diploma (voltaremos ao tema).

Em 2014 foi submetido ao Tribunal Constitucional um pedido de fiscalização preventiva que considero de grande relevância, também por envolver matéria a que Convenção Europeia dos Direitos Humanos dá grande importância. Estava em causa um problema de liberdade religiosa, num decreto legislativo regional que determinava que os encarregados de educação que pretendessem que os seus educandos não frequentassem atividades de natureza moral e religiosa tinham que o declarar expressamente (quer dizer, por defeito, se os pais nada dissessem, as crianças teriam que frequentar tais atividades). O Tribunal Constitucional veio a pronunciar-se pela inconstitucionalidade, nos termos em que isso lhe foi requerido.

Outros dois pedidos de fiscalização preventiva, muito recentes, justamente do mês de março de 2017, foram entretanto objeto de decisão.

O primeiro incidente sobre uma norma de um decreto legislativo regional que determinava que incorre no crime de desobediência qualificada quem dificultar ou se opuser ao desempenho das funções inspetivas dos inspetores de pescas. Considerei que, atendendo à respetiva incidência penal, esta matéria estaria reservada à Assembleia da República, tese que o Tribunal Constitucional acolheu, pronunciando-se pela inconstitucionalidade do diploma.

O segundo dizia respeito a várias normas constantes de um decreto legislativo regional que pretendia introduzir alterações na estrutura orgânica da Assembleia Legislativa da Região Autónoma da Madeira. Mais especificamente, estavam aqui em causa matérias relativas ao financiamento político-partidário, bem como ao estatuto dos “antigos deputados” e suas associações, relativamente às quais se colocou a questão (entre outras) de estarmos, mais uma vez, perante matérias reservadas à competência legislativa da Assembleia da República.

Esta última decisão foi demasiado complexa para que possa ser aqui sintetizada em poucas palavras. Em suma, o Tribunal Constitucional manteve a posição de que o financiamento partidário é matéria reservada à Assembleia da República, assim como alguns aspetos do estatuto de “antigo deputado” regional que não possam considerar-se “equivalentes” ao estatuto de “antigo deputado” à Assembleia da República. Quanto a este último ponto, o Tribunal Constitucional considerou que a Assembleia Legislativa Regional madeirense não podia estabelecer a perda do estatuto de “antigo deputado” regional por mero despacho do Presidente da Assembleia Legislativa (pois isso não tem paralelo no estatuto dos “antigos deputados” à Assembleia da República).  

Depois da apreciação pelo Tribunal Constitucional, e de harmonia com o artigo 279.º da Constituição, caso o Tribunal se pronuncie pela inconstitucionalidade, deverá o Representante da República vetar o diploma, sendo este devolvido à Assembleia Legislativa.

Neste caso, o diploma não poderá ser assinado sem que a Assembleia Legislativa expurgue a norma julgada inconstitucional, o que aconteceu com o diploma que proibia o tráfico das “substâncias psicotrópicas”.

E se o diploma for reformulado isso não exclui, ainda assim, a possibilidade de um novo pedido de apreciação da constitucionalidade do diploma, agora na nova versão aprovada.

Se, ao analisar o diploma regional que lhe é enviado para assinatura, o Representante da República entender não existir nenhuma inconstitucionalidade ou se o Tribunal Constitucional não se pronunciar pela sua inconstitucionalidade, o Representante da República poderá, ainda assim, vetá-lo, caso entenda justificar-se por discordância de fundo quanto ao seu conteúdo, fundamentando de forma expressa esse veto, nomeadamente com base em razões de justiça política ou social que partem do seu juízo crítico.

Esse poder de veto pode, todavia, ser ultrapassado caso a Assembleia Legislativa entenda confirmar o diploma por maioria absoluta dos deputados em efetividade de funções, devendo, nessa hipótese, o Representante da República assinar o mesmo.

Foi o que aconteceu com um diploma que entendi vetar naquele que ficou conhecido como o “veto das galinhas”.

O diploma em apreço procedia à transposição de uma diretiva relativa ao bem-estar de galinhas poedeiras.

Porém, a transposição feita pelo diploma regional desrespeitava a diretiva, alargando o prazo para que as capoeiras fossem adaptadas às novas exigências, o que traduzia uma situação de incumprimento da legalidade comunitária mas não, em rigor, de incumprimento da Constituição.

Assim, entendi devolver o diploma à Assembleia Legislativa – i.e. vetar o diploma; a Assembleia Legislativa optou por o confirmar pelo que só me restava assinar o diploma, não podendo já enviá-lo para o Tribunal Constitucional.

Já no caso dos diplomas do Governo Regional, o veto é definitivo embora nada exclua que o Governo tente aprovar o mesmo diploma por via parlamentar, de modo a poder porventura ultrapassar, por via dessa outra instância decisória, o veto.

Mas não se esgotam aqui os poderes do Representante da República em matéria de controlo normativo.

Ele tem ainda poderes para requerer a fiscalização sucessiva da constitucionalidade ou da legalidade ao Tribunal Constitucional – i.e. depois dos diplomas terem sido publicados.

O Representante da República tem um poder de controlo sucessivo da validade, seja de diplomas aprovados pelos órgãos de governo próprios da região, seja de diplomas aprovados pelos órgãos de soberania. Aqui, cumpre distinguir entre as questões de constitucionalidade e as questões de legalidade.

Em matéria de constitucionalidade, os poderes do Representante da República para requerer a fiscalização dessa mesma constitucionalidade, estão limitados à defesa de “direitos da região”, isto é, dos seus poderes autonómicos previstos essencialmente nos artigos 225.º a 228.º da Constituição, o que significa que poderão ser objeto desse requerimento essencialmente normas provenientes dos órgãos de soberania, - situação em que o Representante da República surge como um defensor da autonomia regional, pois não é verosímil que os órgãos de governo da região venham, contra os seus próprios interesses, negar direitos das regiões.

Em matéria de legalidade, o Representante da República atua essencialmente como defensor do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma, o qual regula o essencial da organização política e administrativa da Região Autónoma, bem como as relações desta com o Estado na sua unidade e com os órgãos de soberania.

Com efeito, o Representante da República só pode requerer a declaração jurisdicional de ilegalidade de uma norma constante de um diploma regional ou nacional com fundamento em ofensa de preceitos ou princípios consignados nesse mesmo Estatuto Político-Administrativo, que é, como se disse, a Lei Fundamental da Região (aprovada pela Assembleia da República, sob proposta da respetiva Assembleia Legislativa Regional, e que prevalece sobre a generalidade das leis ordinárias aprovadas pelos órgãos de soberania).

Esta restrição não é, porém, plenamente compreensível, e já originou jurisprudência constitucional tão difícil de acompanhar quanto a própria restrição.

Em Outubro de 2013, requeri ao Tribunal Constitucional a declaração de ilegalidade da totalidade das normas constantes da Resolução do Governo Regional n.º 905/2013, de 6 de setembro, relativo à aplicação na Região da semana de 40 horas de trabalho na função pública.

Fi-lo com base na violação de vários artigos do Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira (nomeadamente, dos artigos 37.º, 39.º e 69.º), sabendo que não me era permitido invocar qualquer violação direta da Constituição.

Sem apreciar a conformidade do diploma com o Estatuto Político-administrativo, o Tribunal Constitucional considerou que a matéria pertencia à reserva de competência legislativa da Assembleia da República, sendo o diploma inconstitucional por essa via. Simplesmente, não podendo o Representante da República invocar então inconstitucionalidades diretas, o Tribunal Constitucional decidiu não conhecer da questão, e manteve o diploma.

 Tal decisão não só não contribuiu para a manutenção da unidade da Constituição, como mostrou um caminho possível para adoção de medidas inconstitucionais, cujo controlo só é possível por iniciativa de órgãos mais distantes das Regiões Autónomas (por exemplo, o Provedor de Justiça) e, portanto, mais difícil.

Mas passemos a outro ponto.

Apesar do que dissemos sobre a atuação do Representante da República em matéria de controlo da produção normativa e da validade das normas em vigor no ordenamento jurídico, a sua ação não deve de modo nenhum ser vista apenas numa perspetiva negativa, de impedimento, fiscalização ou moderação do poder normativo regional ou nacional.

Pelo contrário, ela deve ser também vista numa perspetiva positiva no sentido de um poder de influência persuasiva que resulta da sua colaboração institucional com os órgãos de governo próprios da Região e com os órgãos de soberania, através da realização de audiências e de consultas informais.

É neste sentido que não se exclui que o Representante da República possa eventualmente fazer sugestões de aperfeiçoamento de diplomas elaborados pelo Governo Regional ou que fundamente as razões do concreto exercício do seu poder de veto em relação a determinado diploma da Assembleia Legislativa Regional, promovendo assim uma possível alteração do diploma nos pontos críticos que fundamentaram tal veto.

Acresce, ainda a possibilidade de apelar à observância das próprias regras procedimentais de aprovação dos diplomas, em especial quando sejam expressão de normas da Constituição ou do Estatuto Político-Administrativo.

Poderia exemplificar com o apelo feito para que fosse cumprido, mesmo em processo de urgência, o prazo mínimo de 48 horas que, segundo o Regimento da Assembleia Legislativa, deverá existir entre a fixação da ordem do dia e a discussão dos diplomas em plenário, de modo a dar aos deputados, nomeadamente os da oposição, a possibilidade de preparem devidamente a discussão parlamentar.

É também nesta linha que os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio da região poderão consultar informalmente o Representante da República pedindo a sua opinião sobre assuntos de interesse regional ou de interesse nacional mas simultaneamente relacionados com a Região, sem prejuízo dos deveres de audição dos órgãos de governo próprio da Região que a Constituição impõe aos órgãos de soberania.

          Trata‑se de funções, diria, de alguma maneira informais que procuro concretizar igualmente com todas as forças políticas na Madeira – quando, para tal, sou solicitado.

          Tenha-se, porém, presente que os poderes de influência persuasiva do Representante da República de que falamos estão naturalmente limitados pela recetividade das instâncias competentes para decidir, nos termos da Constituição ou dos Estatutos Político Administrativos.

Relembre-se, em especial, que o Representante da República não tem poderes legislativos, nem governamentais ou executivos.

Não pode, obviamente, obrigar a Assembleia Legislativa ou o Governo Regional a atuarem de determinada forma que entenderia porventura mais correta.

Nem deve, de modo nenhum, substituir-se a tais órgãos no exercício das suas competências.

Mas deve registar-se que esta cooperação institucional, muitas vezes informal, tem contribuído para um aperfeiçoamento das normas regionais, legislativas e regulamentares, e para uma redução dos prazos de publicação e entrada em vigor de diplomas relevantes para os madeirenses.

Um exemplo disto mesmo deu-se aquando do meu veto, em Fevereiro de 2014, de um decreto da Assembleia Legislativa que pretendia definir a titularidade de infraestruturas de jurisdição portuária: o diploma dizia respeito ao conhecido edifício sito na então Praça do Mar, aqui no Funchal.

Em lugar de confirmar o diploma, a Assembleia Legislativa reformulou-o, levando em conta as dúvidas e contributos do Representante da República. Considero ter sido este um caso de sucesso em termos de cooperação institucional, que resultou num melhoramento do diploma final, que acabei por assinar.

Já sucedeu também que, na sequência da devolução pelo Representante da República de um diploma à Assembleia Legislativa, esta tenha optado por “congelar” o processo legislativo. Foi o que sucedeu quando, em Agosto de 2013, vetei um diploma por não considerar aceitável uma norma que autorizava o recrutamento, através de concurso, para cargos de direção intermédia, de entre pessoal na situação de aposentado.

Não estava em causa a possibilidade de um aposentado poder exercer funções públicas (nos termos dos artigos 78.º e 79.º do Estatuto da Aposentação). O que questionei foi a possibilidade de pessoal na situação de aposentado se apresentar a esses concursos eventualmente concorrendo com outros funcionários no ativo: entendi que não existia razão objetiva suficiente para essa diferença em relação ao regime nacional, face ao interesse específico da Região e no atual contexto social e económico.

Gostaria de referir brevemente algumas outras competências do Representante da República

Nos termos da Constituição e do Estatuto Político-Administrativo, é ao Representante da República que compete nomear o presidente do governo regional, “tendo em conta os resultados eleitorais”, bem os seus restantes membros, sob proposta daquele.

É também ao Representante da República que compete exonerar o presidente do governo regional, a seu pedido, bem como os seus restantes membros.

Ora, quando não haja uma maioria absoluta de certo partido ou coligação, o Representante da República pode desempenhar uma função muito relevante, mas sempre essencialmente diplomática, auxiliando soluções de governo de maior estabilidade (muito embora lhe esteja vedado promover governos “de iniciativa do Representante”).

Naturalmente, esse papel diplomático é mais facilmente desempenhado por um órgão de presença constante na Região, como é o Representante da República, conhecedor das questões quotidianas, que só a proximidade possibilita verdadeiramente.

Deve ainda fazer-se referência à participação que o Representante da República tem no Conselho Superior de Defesa Nacional e no Conselho Superior de Segurança Interna (artigos 6.º e 7.º do Estatuto do Representante da República) e que decorre precisamente da dupla natureza do seu cargo: nacional e regional.

Na verdade, a defesa nacional e a segurança pública correspondem a funções de soberania que ao Estado incumbe assegurar.

Registe-se aqui o direito que o Representante da República legalmente tem a ser informado pelos comandantes regionais das forças da PSP de tudo o que disser respeito à segurança pública no território da respetiva região autónoma, podendo, quando o julgar adequado, colher sobre a mesma matéria informações das demais forças de segurança.

Note-se também que o Representante da República assegura, na Região Autónoma, a execução da declaração do estado de sítio e do estado de emergência, nos termos da lei, em cooperação com o Governo Regional (artigos 8.º do Estatuto do Representante da República).

Chegados a este ponto, é tempo de concluir.

Defender a “República” com o especial significado ético-jurídico acima referido de defesa do “Estado de direito democrático” e dos “direitos e liberdades fundamentais” que o consubstanciam, procurando sempre o justo equilíbrio entre as exigências do Estado unitário e as exigências da autonomia regional bem como a promoção dos laços de solidariedade entre todos os portugueses, assim se poderia sumariar a tarefa do Representante da República.

Específico e diferenciado no seu contorno constitucional, o Representante da República assume-se com um papel mediador ou moderador por excelência e como um fator de unidade e coesão nacional que constitucionalmente o justifica e que tento, da melhor forma, cumprir.

Procuro cumprir, na medida em que me for possível, para honrar o mandato que recebi de Sua Excelência o Presidente da República; e julgo que tenho vindo a fazê-lo por forma a não dar razão àqueles que defendem a extinção do cargo.

Este cargo foi desempenhado de uma forma superior pelos meus antecessores.

Gostaria de não desmerecer deles, até por estar convencido que ao longo do tempo, os Representantes da República contribuíram para o aprofundamento e desenvolvimento da autonomia da Região, ou melhor, não tem sido a sua existência que tem impedido a autonomia regional de progridir e se intensifique ou tenha alguma vez sido um obstáculo ao relacionamento entre os órgãos de soberania e os órgãos de governo próprio da Região. Antes pelo contrário.

Muito obrigado pelo tempo que me dispensaram!

 

Funchal, abril de 2017