Intervenção do Representante da República para a Região Autónoma da Madeira na Sessão de Encerramento da 2ª Conferência de Segurança e Defesa subordinada ao tema “A cooperação entre as FA e as FSS no combate às ameaças transnacionais em Portugal – atualidade e prospetiva” no dia 12 de novembro de 2016
A temática da Conferência que hoje se encerra é de grande relevância, mostrando à evidência como as ameaças que hoje o Mundo enfrenta nos levam a questionar pressupostos há muito assumidos.
Esse questionamento é desafiante, do ponto de vista intelectual e prático.
Mas é também preocupante porque revela a eventual desadequação de tradicionais formas de pensar.
É, pois, imperioso que estejamos bem despertos para sabermos reconhecer onde devemos conceder na alteração de paradigmas e, ao mesmo tempo, até onde devemos recusar alterações aos nossos pilares civilizacionais.
O sentimento de insegurança é altamente corrosivo das sociedades desenvolvidas, justamente porque foi a superação do mesmo que permitiu às comunidades políticas atingir graus de desenvolvimento apreciáveis.
Atualmente, somos confrontados com um vasto conjunto de aspetos, na nossa vida em sociedade, que tendemos a considerar como alterações estruturais, pelo menos potencialmente.
As sociedades modernas são multirraciais, multirreligiosas, agrupam pessoas com mundividências muito diversas.
Temos de estar atentos para saber distinguir uma ameaça ao essencial do nosso modo de vida de um saudável acolhimento da diversidade e da liberdade.
Nos últimos anos, as questões de segurança ganharam novos contornos, como todos sabemos, fruto da ameaça do terrorismo.
E hoje o fenómeno do terrorismo é mais difícil de conceptualizar e os seus motivos mais difíceis de entender.
É, portanto, mais complexo e difuso o respetivo combate.
Há muito trabalho a fazer neste domínio, para que o sentimento de insegurança não se transforme no nosso pior inimigo, toldando a nossa capacidade de análise, de atualização e de resposta.
A temática da cooperação entre as Forças Armadas e as Forças de Segurança no combate a ameaças que são efetivamente transnacionais polariza estas preocupações.
Desde logo, na compreensão do princípio segundo o qual cabe às Forças Armadas a defesa do Estado perante ameaças que lhe são externas, enquanto as Forças de Segurança se ocupam da ordem pública interna.
Não se trata de um vetor ou princípio organizatório da segurança especificamente português.
Podemos dizer que é uma inspiração atlântica, em reação aos autoritarismos e totalitarismos do século XX, que instrumentalizaram as Forças Armadas à manutenção dos correspondentes regime políticos.
Prevenindo esta deriva, a Constituição de 1976 distingue claramente as funções das Forças de Segurança (artigo 272.º) e das Forças Armadas (artigo 275.º), reservando para estas últimas, salvo exceções contadas, a defesa externa do Estado.
Este nosso regime constitucional encontra a sua razão de ser como reação ao que preconizava a Constituição de 1933 que convocava as Forças Armadas para a “manutenção da ordem e da paz pública”.
Por isso mesmo se converteu num verdadeiro pilar da democracia constitucional, emprestando uma garantia adicional a uma outra, a da dependência das Forças Armadas relativamente ao poder civil.
Hoje, porém, a realidade alterou-se substancialmente.
Em termos gerais, o número de conflitos armados internacionais, no sentido clássico do termo, é diminuto quando em comparação com conflitos de natureza interna.
Por outro lado, o próprio conceito de “ameaça externa” tem vindo a ser objeto de novas análises críticas.
Na verdade, deve perguntar-se o que é hoje uma “ameaça externa”?
Será ela necessariamente provinda de outro Estado?
Poderá ter origem em grupos armados que não Estados?
E como articular a ameaça que tais grupos podem representar quando mantenham relações, mais ou menos próximas, com agrupamentos internos?
Por tudo isto, a manutenção dos conceitos operativos tradicionais de ameaça externa e interna suscita várias questões.
Desde logo, a da articulação entre Forças Armadas e Forças de Segurança, como identificado na temática desta Conferência, e para o qual tantos e tão importantes contributos foram sendo carreados ao longo destes dois dias de debate.
Será talvez o tempo de reconsiderarmos o papel das Forças Armadas neste contexto de ameaças tendencialmente globais que escapam a uma distinção bem marcada entre defesa externa e interna do Estado.
Não se trata de acabar com a distinção entre Forças Armadas e Forças de Segurança, mas sim de garantir que essa distinção não constitua um entrave demasiadamente arcaico para a defesa dos valores essenciais das democracias ocidentais.
Há, aliás, pressupostos clássicos da ordem internacional que carecem de atualização e que nos podem ajudar a superar este aparente impasse.
Um desses pressupostos é justamente o princípio da não ingerência nos assuntos internos dos Estados.
Mas é hoje comumente aceite a intervenção nos assuntos internos de outros Estados em situações limite, não só as que o terrorismo transncional coloca mas também quando os direitos humanos são massivamente violados colocando em causa a dignidade da pessoa.
As nossas Forças Armadas participam com frequência em contingentes de forças internacionais para a manutenção da paz (o chamado peace-keeping) que atuam no âmbito interno de outros Estados.
É certo que se trata aqui do cumprimento de compromissos internacionais do Estado português e da participação em missões humanitárias e de paz assumidas por organizações internacionais que Portugal integra.
Mas não deixa de constituir, em termos gerais, mais um elemento para a relativização da distinção entre contextos de ameaça externa e interna, sobretudo quando algumas missões visam evitar a violação dos direitos humanos nas relações internas de um Estado ou quando o Estado se mostra incapaz de proteger a sua população de uma ameaça interna ainda que de contornos transnacionais.
O sentimento de insegurança coletiva que tem perpassado pelas nossas sociedades tem suscitado aqui e ali algumas ideias e movimentos que põem em causa valores fundamentais em que assenta uma sociedade democrática.
Há que estar atento e vigilante perante tais fenómenos de egocentrismo, de xenofobia e desprezo pela dignidade da pessoa.
Por exemplo, devemos ser intransigentemente irredutíveis perante algumas vozes que pretendem ver recuperada a temática da pena de morte.
Felizmente, o âmbito territorial do Conselho da Europa, organização que agrupa a quase totalidade dos Estados europeus, é hoje considerado uma zona livre de pena capital.
Este é um adquirido civilizacional em cuja preservação temos que ser inabaláveis.
Um retrocesso neste domínio não seria apenas um sério atentado ao princípio do Estado de direito, mas verdadeiramente um golpe drástico e lamentável no princípio da dignidade humana: distinguir-nos-íamos do terrorismo então mais pelo processo do que pelos resultados.
Minhas Senhoras e Meus Senhores,
Um observador menos atento poderia desvalorizar, nestes domínios, o papel das regiões autónomas, como a Região Autónoma da Madeira.
Seria um erro.
As regiões autónomas dão um contributo essencial para o posicionamento geoestratégico de Portugal, em especial no que toca ao seu posicionamento atlântico.
Na verdade, deste ponto de vista, Portugal seria bem diferente não fossem as Ilhas.
A Madeira, em particular, constitui a “ponta sul” da “lança portuguesa” e uma porta de entrada aberta ao mundo que queremos manter mas que é necessário vigiar atentamente.
Assim, desejo felicitar todos os oradores e participantes neste evento pelos contributos que trouxeram, e faço votos para que estas Conferências continuem a realizar-se por muitos e bons anos: Portugal precisa e a Região Autónoma da Madeira – estou certo - sempre as acolherá com o maior gosto, empenho e interesse.
Muito obrigado.