Intervenção do Representante da República para a Região Autónoma da Madeira na Sessão de Encerramento das Conferências de Segurança e Defesa – Particularidades Geopolíticas e Geoestratégicas da RAM no pensamento da Grande Estratégia Nacional
28 de novembro de 2015
Nos últimos anos, acontecimentos vários de incidência global e regional trouxeram as matérias da segurança e da defesa para a “mesa da Europa”, ainda que tal não signifique a sua inclusão plena na agenda europeia.
Os recentes atentados de Paris mostram inequivocamente a necessidade de uma estratégia europeia, não apenas de combate ao terrorismo – o que já era evidente desde os atentados de Londres e Madrid -, mas, mais ainda, de uma estratégia ou de um pensamento europeu de vocação global em matéria de segurança e defesa.
Como sempre sucede, porém, foi preciso um momento de violência para recentrar a atenção efetiva sobre assuntos preocupantes que estavam já à vista de todos
Aliás, a atual “crise dos refugiados” já vinha mostrando que a Europa acordou tarde para situações complexas e com diversas vertentes, designadamente, (i) de direitos humanos, (ii) de potencial intervenção humanitária, (iii) de segurança, (iv) geopolítico, (v) mas também de governo ou governança global (ou global governance).
As hesitações da UE e dos Estados que a compõem, juntamente com a diferente pauta de atuação de vários destes mesmos Estados para com os refugiados e para com os seus parceiros europeus mostram, aliás, várias coisas, todas elas preocupantes.
Mostram, em primeiro lugar, que a Europa tem muita dificuldade em compreender a sua circunstância geopolítica, não conseguindo, portanto, definir uma posição geoestratégica sólida.
Por outro lado, os Estados europeus não partilham todos uma mesma visão dos direitos humanos e da respetiva importância, e que não comungam de uma visão próxima do impacto global da Europa.
Enfim, é claro que ao projeto europeu faltam, neste momento pelo menos, bases políticas capazes de sustentar uma ideia de “regime político europeu”, ideia essa fundamental para que sobre ela se possam tomar opções concretas e de natureza institucional, em cumprimento de um desígnio efetivamente escolhido e com um sentido percetível pelos cidadãos e pela comunidade internacional.
A globalização da política e a globalização dos direitos são características de um tempo novo que coloca grandes desafios que temos, pelo menos, que saber equacionar.
E, como salientou o Presidente Obama, ao aceitar o Prémio Nobel da Paz, «haverá momentos em que as Nações – agindo de forma universal ou concertada – verão o uso da força como sendo não só necessário, mas também moralmente justificável».
Compreendem-se neste contexto as declarações de guerra contra o “Eixo do Mal” ou contra o DAESH.
Mas a racionalidade e a razoabilidade da nossa reação, enquanto questão civilizacional, é um desafio a que devemos prestar a maior atenção.
Na sequência do 11 de setembro de 2001, os Estados que partilham a tradição a defesa e a garantia dos direitos humanos ficaram mais vulneráveis para alguma “deriva securitária”, para tolerar afetações desses mesmos direitos fundamentadas.
Essa disponibilidade é compreensível, até certo ponto, e até mesmo suportada por uma opinião pública receosa de ver repetidos eventos daquela natureza.
De então para cá, duas coisas ficaram demonstradas: (i) que as razões para tais receios são reais, já que em solo europeu ocorreram acontecimentos da mesma natureza, embora de escala diferente; (ii) e que as “derivas securitárias” não evitam totalmente esses mesmos acontecimentos.
Assim, se certas afetações da liberdade contrariam a essência da tradição do nosso pensamento ético, filosófico e político, tão-pouco a respetiva “utilidade marginal” mostra resultados que pudessem ser considerados como contrabalanço.
Os dados disponíveis parecem mostrar que o uso correto do chamado “poder suave” e a “atividade de inteligência” têm permitido evitar muito mais manifestações de terrorismo do que poderia parecer.
Sucede, porém, que qualquer atentado como a recente tragédia de Paris leva a que tudo seja colocado em causa, fazendo parecer que não há resultados visíveis dessa mesma “atividade de inteligência”.
Não nos podemos, no entanto, tornar menos exigentes relativamente às condições fundamentais da liberdade concreta que define o nosso modo de vida, porquanto como enfatizou o Presidente Obama, no seu primeiro discurso de posse, “a nossa segurança vem da justiça das nossas causas, da força dos nossos exemplos, das qualidades moderadas da humildade e da contenção”.
Face a desafio do terrorismo, temos de ser inteligentemente contidos, sem confundir a nossa determinação com abdicação dos nossos princípios que são a razão de ser da nossa civilização.
Como vem sendo salientado pela jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos há limites, linhas vermelhas que não podem ser ultrapassadas.
Recordo, por exemplo, um caso de 2009, no qual participei quando desempenhava funções como juiz no Tribunal de Estrasburgo, e em que o Reino Unido foi condenado por várias violações do art.º 5.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (direito à liberdade e à segurança), em razão da detenção arbitrária de vários não-nacionais e das condições de detenção dessas mesmas pessoas.
Nesta senda, devemos também ter presente que foram já vários os Estados Europeus - a Polónia, a Itália, a Roménia e a Lituânia - acionados naquele Tribunal por colaborarem com autoridades norte-americanas, autorizando locais de detenção secreta (secret detention sites) para se realizarem interrogatórios que não poderiam ser efetuados nos Estados Unidos da América.
Entre nós, estas situações tiveram algum eco mediático devido a alegada passagem de aviões da CIA transportando aqueles prisioneiros pelo espaço aéreo e por alguns aeroportos nacionais.
Contudo, temos de admitir que situações limite – como aquelas que o terrorismo nos coloca - permitem e justificam não só uso da força mas também o sacrifício de alguns direitos e liberdades fundamentais.
Mas a razão de ser de um Estado de direito democrático postula que se tente desenhar os limites aceitáveis de tal sacrifício.
Num plano de racional objetividade, a Convenção Europeia dos Direitos Humanos, em consonância com outros instrumentos internacionais semelhantes, traça, no seu artigo 15.º, as balizas a respeitar em caso de guerra ou de outro perigo público que ameace a vida da Nação,
Num cenário destes, os Estados podem suspender todos os direitos e liberdades garantidos pela CEDH na proporção e pelo tempo exigido pela situação; mas há um núcleo duro de direitos que nenhuma circunstância pode justificar o seu sacrifício e que estão excecionados no n.º 2 do referido art.º 15.º.
Entre eles, e por economia de tempo, saliento, o direito à vida, a interdição da tortura e dos tratamentos desumanos e degradantes e da escravatura.
Outro aspeto a considerar atualmente é o lugar do princípio da não ingerência nos assuntos internos dos Estados, tão relativizado no plano político-económico, ao mesmo tempo que é por vezes exacerbado no plano dos direitos humanos e do direito humanitário.
Como é sabido, ganha terreno no discurso internacional, também ao nível das Nações Unidas, a chamada “Responsability to Protect”, que tem sido pouco operante em grande medida devido aos bloqueios no seio do Conselho de Segurança.
Este último aspeto mostra, aliás, a relevância da concorrência entre instituições internacionais com visões políticas e jurídicas conflituantes.
Em todo o caso, a existência de ameaças reais ao modo de vida das democracias atlânticas (ou de inspiração atlântica) exige que perguntemos: estaremos num momento objetivamente excecional, ou será ele excecional sobretudo em razão da nossa incapacidade para com ele lidar com os instrumentos tradicionais?
Dir-se-ia que as Regiões autónomas, como a Região Autónoma da Madeira, apenas longinquamente têm relação com estas temáticas, e ainda assim sobretudo por força de constituírem parte do Estado Português (e dependendo, portanto, da relevância deste).
Sucede, porém, que as regiões autónomas participam institucionalmente na transmissão e construção de uma cultura de pluralismo e de integração, por exemplo, no Comité das Regiões da União Europeia.
É necessário ter presente que a Região Autónoma da Madeira é um exemplo de como, num mundo globalizado, a descentralização política constitui um forte instrumento de desenvolvimento e paz social, sem esquecer, evidentemente, que é um ativo geoestratégico fundamental para a posição de Portugal, dado o seu posicionamento atlântico.
Por todas estas razões, congratulo-me com a realização destas Conferências, saudando a todos os oradores e participantes pelos contributos que trouxeram para a reflexão de tão atuais e importantes temáticas.
Muito obrigado.