(Fotografia gentilmente cedida pela Associação Comercial e Industrial do Funchal - ACIF )
DISCURSO DO REPRESENTANTE DA REPÚBLICA POR OCASIÃO DO ENCERRAMENTO DO SEMINÁRIO - COMPETITIVIDADE NA JUSTIÇA, NO DIA 26 DE NOVEMBRO DE 2014, NO CENTRO DE ESTUDOS DE HISTÓRIA DO ATLÂNTICO
Foi com muito gosto que aceitei o convite que me foi endereçado pela ACIF, para intervir na sessão de encerramento deste seminário.
O tema que aqui nos reuniu – competitividade da justiça – insere‑se num ciclo de debates, dedicado à competitividade regional.
Ambas constituem realidades – a Região e a justiça ‑ às quais estou profundamente ligado.
Na verdade, devo proceder previamente ao meu registo de interesses: sou madeirense e magistrado de carreira, atualmente Juiz‑Conselheiro jubilado do Supremo Tribunal de Justiça; iniciei o meu percurso profissional justamente nesta Região, na comarca de São Vicente.
Por isso, penso conhecer suficientemente os problemas da justiça e os da Região Autónoma da Madeira.
Mas falemos especificamente sobre competitividade da justiça.
Este tema presta‑se a diferentes abordagens.
A primeira, associada à análise económica do direito, emergiu no final do passado século, tendo impacto sobretudo no pensamento e na prática judiciária, nos EUA.
Como é geralmente reconhecido, o uso da análise económica do direito parte de uma premissa simples mas controversa – a de que a única finalidade do direito deve ser a de promover a eficiência económica.
Nesta decorrência, alguns referem‑se a custos de contexto que podem dificultar a competitividade da justiça decorrentes de dificuldades de interpretação da lei, considerando que o pressuposto do funcionamento das relações económicas em harmonia não aceita a imprevisibilidade na solução das dúvidas sobre a lei e o contrato
Não pretendo, nem quero, neste momento, explicar os conhecidos antagonismos entre economistas e juristas que resultam da análise económica das normas jurídicas.
Relembro apenas que os economistas levam em conta o efeito das normas sobre o mercado, o que nem sempre acontece com os juristas.
Assim também, os economistas partem do princípio de que as normas jurídicas modificam os comportamentos, asserção que os juristas, algumas vezes, contestam.
Não creio, por isso, que tudo seja reconduzível a uma perceção instrumental do Direito – ou, se quiserem, também da justiça – presente na análise económica.
Mas podemos considerar uma outra perspetiva da competitividade da justiça que a coloca no plano da concorrência entre Estados.
Aqui, frequentemente encontramos discursos reveladores de algum pessimismo, segundo os quais a justiça em Portugal funciona mal, não se modernizou, não sendo digna do espaço europeu em que nos encontramos.
Salvo o devido respeito, não é esse o meu entendimento.
A justiça portuguesa revela, em algumas áreas, patamares de desempenho que estão ao nível dos países mais desenvolvidos do mundo.
Refiro-me, concretamente, ao exemplo do Supremo Tribunal de Justiça – cujo tempo de decisão ronda os três / quatro meses – causando admiração noutras magistraturas europeias, a que se pode juntar o desempenho dos nossos Tribunais da Relação e de muitos da 1ª instância.
É certo que existem ‑ e existirão sempre – lacunas e deficiências, e algumas de grande gravidade, mesmo na nossa Região.
Aliás, os recentes problemas com a informatização dos tribunais, as sucessivas modificações do regime da ação executiva, a implementação da reforma do processo civil ou as dificuldades relacionadas com a concretização do novo mapa judiciário, fazem‑nos recordar que a reforma da justiça não é, nunca, um processo acabado mas antes um processo dinâmico.
Abro um parêntese para sublinhar que é muito cedo para um juízo de valor seguro sobre a reforma judiciária que acaba de entrar em vigor.
Eu próprio me interessei pela manutenção da comarca de São Vicente, não por causa do seu volume de serviço mas pela dificuldade ditada pela distância e pela ausência de transportes públicos adequados no acesso das pessoas aos tribunais.
Fi-lo porque me foi pedido e espero que razões afetivas não tenham condicionado a minha ação.
Hoje, ao saber que será o Tribunal a deslocar-se à Secção de São Vicente sempre que se justifique, estou mais tranquilo, por duas razões.
A primeira, pelo que tal representa para minimizar o esforço que é pedido às populações, quando tenham de se relacionar com o serviço da justiça.
A segunda, porque a justiça deve ser feita de modo a que seja mostrada e conhecida pelas pessoas – como deve acontecer com a justiça penal, até por razões de prevenção geral ‑, e para que se saiba que continua a haver “juízes em Berlim”, perdão, nesta Região Autónoma.
Não queria alargar a minha intervenção, mas permitam-me que vos diga que há muito defendo que, sem uma racional contingentação processual para juízes e funcionários, jamais se conseguirá superar com sucesso as entropias que afetam este sector.
Fechado este parêntese, poder-se-ia apontar as sucessivas condenações do Estado Português pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, em razão de atrasos na justiça, igualmente como exemplo do seu mau funcionamento.
Não há dúvida que tais casos demonstram deficiências no sistema, mas não no sistema como um todo.
Por outras palavras, tais casos não resultam especificamente, ou apenas, de questões de organização judiciária, ou de questões das leis processuais, mas antes de falhas que resultam da conjugação desses e de outros fatores.
Mas isso não significa, a meu ver, que as condenações ocorridas no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem correspondam a uma condenação geral do funcionamento do sistema de justiça português.
Várias vezes, aliás, tais condenações não podem ser desligadas das especificidades dos processos em questão.
Minhas Senhoras e meus Senhores:
Alguns afirmam que os difusos custos de contexto verificados em Portugal – amálgama onde se inserem aspetos tão diversos como a burocracia nacional, o sistema fiscal ou a administração da justiça, entre outros – representam um entrave ao investimento estrangeiro.
Estou convencido de que alguns desses custos de contexto podem ser, efetivamente, um obstáculo à atração de capitais estrangeiros.
Refiro‑me, por exemplo, à política fiscal, sempre presente no radar dos investidores estrangeiros.
Mas será que o acesso à justiça representa verdadeiramente um entrave ao investimento em Portugal, em particular do vindo do estrangeiro?
Quando se verifica a rapidez com que o capital estrangeiro aparece a adquirir as nossas principais empresas públicas e privadas, diria, intuitivamente, que a justiça não interfere, ou interfere muito pouco, nas tomadas de decisão.
Esta minha intuição aparece confirmada num recente estudo, promovido pela Fundação Francisco Manuel dos Santos, disponibilizado na internet, intitulado “Justiça económica em Portugal”.
O referido relatório, bastante exaustivo, analisou diferentes aspetos da justiça portuguesa, alguns com menos relevância para esta sessão – como aqueles que se relacionavam com a reforma do processo civil – e outros a merecer alguma atenção no contexto da apreciação da competitividade da justiça.
De harmonia com os resultados do inquérito efetuado, a maioria das empresas portuguesas não tem um contacto direto e regular com o sistema de justiça.
Atente-se bem: cerca de duas em cada três empresas (68%) não tinham, no início de 2012, qualquer ação pendente em tribunal na qual fossem parte.
Ainda de acordo com este elaborado relatório, que passo a citar, “mesmo as grandes empresas (…) têm um contacto com o sistema de justiça muito inferior ao que seria de esperar. 16 por cento não tinha qualquer ação pendente no início de 2012, não foi intentada qualquer ação contra 42 por cento e 37 por cento não intentou qualquer ação.”
Como se conclui neste trabalho, “a perceção geral das empresas que foram parte em decisões judiciais é menos negativa do que aquela das que não foram.”
A leitura deste estudo foi, para mim, reconfortante.
A ideia que tinha – e tenho – de que nem tudo vai mal no reino da justiça surge confirmada em dados concretos.
É missão de todos nós, em meu entender, transmitir essa realidade.
A justiça portuguesa não é, por conseguinte, menos competitiva do que a de outros Estados.
Mas, temos de admitir que ainda falta um longo caminho a percorrer.
É por isso que aqui estamos.
Para, com o nosso contributo, ajudarmos a reformar o que deve ser reformado e a manter o que deve ser mantido.
Para tal, precisaremos, como recordou o Senhor Presidente da República no discurso de abertura do ano judicial de 2014, que prevaleça o compromisso e o consenso entre os agentes políticos e os operadores judiciários, porque, como fez então notar o mais alto magistrado da Nação, “num ambiente de tensões, nunca haverá vencedores. Pelo contrário, num clima de abertura ao diálogo, todos irão ganhar. Acima de tudo, ganharão os Portugueses.”
Assim o saibamos fazer na justiça.
Muito obrigado.